O Evangelho Segundo as HQs: a voz de um herege contra os deuses da modernidade [resenha]
O Evangelho Segundo as HQs: a voz de um herege contra os deuses da modernidade [resenha]

O Evangelho Segundo as HQs: a voz de um herege contra os deuses da modernidade [resenha]

por Gustavo Freixeda,

escritor e colunista da Revista Navalhista

(perfil completo)

Fragmentado como textos esparsos de uma religião antiga, O Evangelho Segundo as HQs é um compêndio de evangelhos, apresentados como apócrifos, que quer dessacralizar o que hoje é tão louvado pela sociedade moderna. Publicado pela editora Mondru, a obra de Mateus Ma’ch’adö coloca heróis da cultura pop sob a luz de temas religiosos, místicos e filosóficos, e faz a pergunta que não quer calar: será que o que exaltamos merece mesmo ser exaltado? A partir de uma genealogia que remonta a anjos caídos, hibridização e mitos pré-diluvianos, com poemas e excertos narrativos, dá novos contornos a nomes como Logan, Sandman, Ravena, Jean Grey e Charles Xavier. Se em algum multiverso são figuras intocadas, essas páginas tratam de inverter toda e qualquer adoração.

Os superpoderes são maldição, a tecnologia é pura possessão e o entretenimento é um sedativo coletivo. Assim, os deuses de outrora são postos lado a lado com os deuses modernos, convocando figuras bíblicas, nomes históricos e personagens das HQs dentro do mesmo campo discursivo. Não à toa, o principal alvo de Ma’ch’adö é a contemporaneidade. O transumanismo, a inteligência artificial, a manipulação ideológica, o colapso simbólico das estruturas tradicionais… nada sai incólume. 

A civilização, contaminada pela possessão tecnológica e pela hibridização transumana, marcha para a sua dissolução moral e espiritual. E a mistura de universos, proposta-base do livro, é essencial para a denúncia de um mundo que se perdeu na própria fabulação. Para isso, o autor evoca as figuras bíblicas, místicas, ocultistas, mas também passa por Baudelaire, William Blake, Eugene Montale, Van Gogh, Foucault, Dante e Octavio Paz. Tudo coexiste em um caldeirão alquímico. A coisa toda é um pouco louca e surpreende justamente por sua sensatez.

Ao invés de valorizar os superpoderes como símbolo de realização humana, Evangelho faz deles uma condição desviada, ou mesmo decadente, da espécie. Os “supers” estão mais para “antis”. A tecnologia, a grande heroína dos nossos tempos, é retratada como um instrumento de dominação subjetiva, sendo um anti-poder, algo que se volta contra a humanidade. A chamada “possessão tecnológica” aparece como um conceito recorrente, associando a dependência digital à perda de autonomia e à deterioração da experiência humana. Assim como nos quadrinhos, a contemporaneidade está cheia de anti-heróis.

Não há exatamente uma história. Cada trecho apresenta uma espécie de testemunho entre ruínas. O texto é cortado por momentos de delírio místico e visões proféticas. A estrutura do livro é deliberadamente caótica, como convém a um apocalipse. Poemas em verso livre, narrações em prosa, visões proféticas, cartas, orações, salmos, evangelhos… As vozes se multiplicam. E todas apontam para o colapso.

Felizmente, no fim do mundo, há espaço para o riso, ainda que histérico. O humor em O Evangelho Segundo as HQs está mais próximo do sarcasmo profético de um Jeremias cansado, ou talvez de um Rorschach exaurido, do que de qualquer alívio cômico. E, ainda assim, ele está lá, injetado nas rachaduras do texto, como uma toxina que nos leva a sorrir com os dentes cerrados, como no trecho em que o autor apresenta a galeria de vilões do Clube dos Nove. A lista é uma mistura improvável de personagens clássicos das HQs — Victor von Doom, Magneto, Lex Luthor — com figuras reais ou semi-reais que orbitam o poder global, como Jared Corey Kushner, o genro de Donald Trump.

Esse tipo de humor ajuda na coesão. Caso o livro se levasse muito a sério, as cornetas do apocalipse não seriam dignas de serem ouvidas. Melhor ficar com tiradas dignas de Monty Python e Terry Pratchett, que miram diretamente nas fragilidades da cultura atual. Não é tragicômico pensar em “comedores de carne sintética” que “andam de quatro pelas ruas com suas coleiras”? 

E é nesse vaivém entre o excesso e a denúncia que o livro encontra seu tom. Ma’ch’adö quer reencontrar a origem, a Centelha Divina, muito embora o caminho seja feito de dor, sangue, penitência, deserto. A nostalgia do Éden é atravessada por arcanos, traumas coletivos, doenças contemporâneas e espectros do Holocausto. A “possessão tecnológica” se torna um dos nomes possíveis para a danação pós-moderna, com seus algoritmos, suas distrações em tela cheia, suas falsas promessas de conexão. Mas, com um nome, fica mais fácil vencê-la?

O mundo está caído. Os heróis são filhos bastardos de um pecado ancestral. Vamos de mal a pior. Mas a poesia pode ainda ser sacramento e espada. Então, sim, fica mais fácil vencê-la.


Mateus Ma'ch'adö

Mateus Ma’ch’adö é antipoeta, escritor e ensaísta, formado em gestão ambiental pela Faculdade Prof. Luís Rosa (Jundiaí). Em 1997 foi cofundador e diretor de cultura da AEPTI (Associação dos Escritores, Poetas e Trovadores de Itatiba-SP). Participou em antologias e na revista literária Beatrizos (Argentina), vencedor de prêmios literários, entre eles, Ocho Venado (México), e um dos finalistas do Mapa Cultural Paulista (edição 2002). Entre 2017 e 2018, foi aluno de música clássica indiana com o citarista, escritor, tradutor e poeta Alberto Marsicano. Autor dos livros publicados Origami de metal (poemas, Editora Pontes, 2005), com prefácio do poeta Thiago de Mello; A mulher vestida de sol (poemas, Editora Íbis Líbris, 2007); A beleza de todas as coisas (poemas, Editora Íbis Líbris, 2013), com prefácio de Alberto Marsicano, onde finalizou sua primeira etapa como anti-poeta; As hienas de Rimbaud (romance, Editora Desconcertos, 2018); 17 de junho de 1904 — O Dia que não amanheceu (ensaio, Editora Caravana, 2022), sobre a obra do escritor irlandês James Joyce, e Nerval (poemas, Editora Caravana, 2022), um livro de transição. Em 2023, iniciando uma nova fase no seu trabalho, publicou o primeiro livro da trilogia Poiesis Religare, intitulado YHVH, pela UICLAP, através de autopublicação. Agora, em 2025, está publicando o novo livro de poemas O Evangelho segundo as HQs, pela Editora Mondru, iniciando a sua segunda trilogia poética. Atualmente está finalizando o livro Um bode para Adonai — outro para Azazel. É autor do canal de literatura Biblioteca D Babel no YouTube.

4 comentários

  1. G. Monteiro

    Ainda não li ‘O Evangelho segundo as HQs’. Postamos no site Amaité alguns poemas deste volume. Mas a resenha de Gustavo Freixeda é cirúrgica; analisa as mais diversas facetas da obra. Este esforço crítico me faz parecer quase estar lendo o mais recente livro de Mateus Machado. Com efeito , o ‘quase’ me traz espanto e curiosidade. Como conheço um ‘pouco – tanto’ o poeta (o intenso recente estalo), estou certo de que esta coletânea de poemas é adensada por um louvável repertório da bíblia, dos mitos, do misticismo, da teologia, da história, das tecnologias, de toda uma infância e juventude submersas por heróis ,deuses e semideuses das HQs de uma época convergindo com o tempo presente. A aguda consciência dos excessos deste nosso ‘pós – moderno’ é outro aspecto na voz de Mateus Machado. Muito me entusiasmo com o surgimento deste autointitulado antipoeta, posto que em tempos de genéricas superficialidades nos sistemas digitais, só mesmo um antipoeta para escapulir de fáceis e rentáveis adjetivos. Isto é, poeta/poesia se desfaz num binário de exclusiva promoção do autor/empreendedor. Que excelente e esperançoso contarmos com ‘O Evangelho segundo as HQs’. Sim, em tempos de poetas absurdamente circunstanciais, dos algoritmos, há resistentes luzes no fim de likes. Óbvio e necessário é dizer que a verdadeira poesia surge da honesta e real deformação do mundo aparente. O ‘realismo real’ se alia ao tempo, mais cedo ou mais tarde, em versos da alma que as selfies não capturam. O tempo pousa e continua nas HQs e se impregna, como um vento sujo, na verdade anunciada pelos antipoetas e, por isso, poucos bastam. Assim haverá um tempo e já é ‘O Evangelho’: por entre fariseismo poético, a literatura no final da via crucis, das imperecíveis HQs.

    1. Mateus Ma'ch'adö

      Obrigado, Geovane, por mais uma vez me honrar com suas palavras, sempre gentis e atenta ao texto. Está entre os meus grandes e melhores leitores, além é claro, da amizade que se fortalece a cada dia. Espero que possamos nos ver em breve. Abs

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