NAVALHAR É PRECISO – TAMARA ISAAC [entrevista]
NAVALHAR É PRECISO – TAMARA ISAAC [entrevista]

NAVALHAR É PRECISO – TAMARA ISAAC [entrevista]

REVISTA NAVALHISTA – Lançado pela Editora TAUP, com um projeto gráfico primoroso, “Não quero ser outra” é o mais recente trabalho de Tamara Isaac. Muitas coisas me chamaram atenção neste poemário. Comecemos pela dedicatória: “Para mim”. Quem leu o livro, entendeu as razões da dedicatória bastante incomum. Gostaria que começasse por aqui, justificando os motivos que levaram a essa dedicatória.

TAMARA ISAAC – Honestamente, eu nem sei direito como responder essa pergunta! Acho que a forma mais simples de responder é: eu escrevo poesia para mim. É o espaço onde ninguém (e quero dizer ninguém mesmo) pode ditar o que eu digo. Como alguém com uma trajetória complexa, vinda de dinâmicas familiares complicadas e de uma cultura igualmente complexa, em que o silêncio e a cumplicidade em contextos abusivos são muito enraizados, eu sempre fui punida de diversas formas por ser aquela que falava a verdade, a “causadora de problemas”.

Com o tempo, aprendi que não há como convencer pessoas que se recusam a ouvir verdades incômodas, aquelas das quais elas querem fugir. Encontrar formas menos desgastantes de honrar a verdade exigiu que eu me afastasse de quem a invalidava repetidamente, para focar em criar espaços onde essas histórias pudessem ser validadas. Escrever esse livro (e escrever, no geral) foi uma forma de expor essas histórias que fui forçada a silenciar, nomear os abusos e as pessoas abusadoras e contar minha própria história nos meus próprios termos. Ninguém pode exigir que eu fique fora de uma história que me afeta.

Eu escrevo e sempre escreverei poesia para mim. É um espaço seguro que construí ativamente para tudo que tenho a dizer, e só eu posso me agradecer por isso. Minha poesia nunca será sobre o que as outras pessoas querem ouvir. Minha escrita não é e nunca será para elas. Meu trabalho se centraliza intencional e descaradamente em mim e na minha visão do mundo. Se ressoa com alguém, ótimo. Se não, eu consigo viver com isso também.

R. N. – Estendendo a pergunta anterior, trazemos um verso seu: “Cada mulher tem uma história”. Qual é a história de Tamara Isaac?  

T. I. – Eu sempre fico apreensiva com essa pergunta porque nunca sei o que responder. Acho que depende de que partes da história de uma pessoa você quer conhecer. Eu literalmente poderia escrever volumes sobre a minha. Então talvez eu possa sugerir a leitura de Não quero ser outra para quem tiver curiosidade de conhecer um pouco mais sobre as partes da minha história que me sinto confortável em compartilhar até agora? É o melhor que posso oferecer para essa pergunta kkk.

R. N. – A segunda seção do livro se chama “Feridas insones”. O que seria preciso para fazer dormir tais feridas?

T. I. – Honestamente, não acho que exista algo que, de forma realista, possa fazer essas feridas dormirem. A gente vive em um mundo que glamouriza a cura e tenta nos convencer de que ela é algo alcançável individualmente. Mas, pela minha experiência, as feridas continuam ali, o nível da dor varia dia após dia e o máximo que consigo fazer é tentar evitar situações que reabram feridas antigas ou criem novas. Palavra-chave: “tentar”.


Acredito que o melhor que podemos fazer é encontrar o máximo possível de mecanismos saudáveis para sobreviver, porque é extremamente violento e absurdo exigir cura individual num mundo onde a violência estrutural e a violência interpessoal te alcançam assim que você sai de casa.


Idealmente, para fazer essas feridas dormirem de verdade, o mundo teria que mudar… politicamente… radicalmente.

R. N. – Pensando nesse “mundo onde a violência estrutural e a violência interpessoal te alcançam assim que você sai de casa”, em especial aqui no Brasil, como o leitor brasileiro tem recebido sua obra?

T. I. – De modo geral, eu diria que as pessoas que leram o livro receberam minhas palavras de forma positiva. No entanto, o engajamento tem sido mais com meu estilo, a coerência do projeto e os temas mais amplos. Acho que o livro certamente provocou muito desconforto.

O que eu observo de forma particular, e que é algo com o qual lido bastante, é que as pessoas muitas vezes conseguem perceber e compreender o peso de certas questões e histórias, conseguem articular a força e a relevância de um projeto, mas não se engajam diretamente com o lado humano individual das coisas. Ou seja, embora tenham se envolvido com os temas, a dor, a escrita, os símbolos do livro, elas se envolveram comigo enquanto escritora, e não como pessoa. Meu livro é visto como um produto, e eu também sou tratada como tal.

Isso, acredito, reflete um fenômeno mais amplo que observo em espaços de “luta coletiva”, onde pessoas acabam escondidas, apagadas ou esquecidas em nome do que parece ser entendido como questões “sociais” (abstratas). Também é um reflexo do desconforto que as pessoas sentem ao confrontar a vulnerabilidade de outra pessoa, provavelmente porque temem a própria. Mas vale destacar: isso não é um problema exclusivo do Brasil. É algo global.

R. N. – “Escrever poesia é fácil”, escreve em suas “Palavras iniciais”. É mesmo? Fala pra gente um pouco de seu processo. O que funciona? O que não funciona? Algo que você acredita que só você, ou poucas pessoas fazem no processo criativo.

T. I. – Não posso falar sobre o processo de escrita de outras pessoas. No meu caso, escrever poesia é uma prática somática. Vindo de uma cultura que quase tem alergia a vulnerabilidade e sentimentos, tive que aprender a me conectar com os meus e processá-los sozinha. E a poesia tem sido a prática mais constante e segura que me ajudou a fazer isso.


Mesmo usando palavras, a poesia me permite diminuir a distância entre o que eu vivo e como isso se manifesta no meu corpo, algo que não dá para explicar totalmente com palavras. Então, escrever sempre é um processo intencional de explorar e reproduzir as sensações que minhas experiências provocam em mim, e não de explicá-las racionalmente. É por isso que só consigo escrever de verdade sobre coisas que vivo ou testemunho e que despertaram algo em mim.


Escrever poesia é fácil porque sempre foi uma extensão natural de mim. Desde pequena, sempre tive uma afinidade com as palavras. Lia e ainda leio muito, e sempre escrevi poesia. Não sei explicar o porquê nem como. Simplesmente aconteceu. Não estou dizendo que é simples ou mágico. É só que, para mim, é algo que acontece de forma muito natural, quase inevitável. Eu não preciso “buscar” as palavras; elas já estão ali, prontas esperando o momento em que eu esteja pronta para encontrá-las. Não sei explicar isso racionalmente. É só como meu cérebro funciona. A poesia também sempre foi o único espaço onde pude existir sem censura. Ninguém pode me dizer sobre o que posso ou não posso escrever, especialmente quando se trata da minha história. Então, eu só conto.


Sobre o que não funciona: como a minha escrita é muito emocional, percebi que preciso processar corporalmente a experiência antes de poder escrever sobre ela. Momentos de emoção intensa podem atrapalhar a identificação do que realmente precisa ser escrito. Então, minha poesia surge na interseção entre minha consciência sobre o que vivi e como meu corpo compreende isso, depois que o pico emocional (como o choro ou a raiva) já passou.


Outras coisas que não fazem muito sentido para mim são os exercícios de escrita poética. Quando fiz cursos, quase nunca consegui realizá-los. Muitas vezes parecem imposições externas que me forçam a explorar temas ou formatos que talvez não ressoem comigo como escritora. Acho que cursos, leituras e oficinas são espaços ótimos para trocar ideias e aprender sobre o que outras pessoas estão fazendo. Às vezes, podem até despertar o desejo de criar (assim como outras expressões artísticas, como exposições, filmes etc.), mas só você pode decidir que história quer contar e como quer contá-la. Acho que pessoas e espaços podem te animar a escrever poesia, mas não podem realmente te ensinar a fazer isso.

R. N. – “como a minha escrita é muito emocional, percebi que preciso processar corporalmente a experiência antes de poder escrever sobre ela.” A dança também entraria aqui? Como sua relação com a dança dialoga/soma com sua produção poética?

T. I. – Minhas práticas de movimento em geral, incluindo a dança, precedem, de certa forma, meu processamento somático das emoções. Elas me ajudaram a reaprender a conexão entre corpo e mente, entendendo-os como uma única entidade. A maneira como me movimento me dá percepção de sentimentos dos quais talvez eu não esteja consciente (resistência, frustração, confiança, entre outros) porque o movimento é a melhor forma de perceber o quanto minha mente está em conexão ou desconexão com meu corpo. Dependendo se a sessão de movimento foi “boa” ou “ruim”, consigo refletir sobre essas informações e compreender o que desencadeia essa conexão ou desconexão. Outras experiências também oferecem percepções semelhantes, como tocar música ou interações com certas pessoas e como elas me fazem sentir no corpo. A poesia seria a etapa seguinte desse processo, em que eu articulo a experiência e os aprendizados para mim mesma.

R. N. – Aliás, o livro compõe todo um itinerário, com documentos em vários idiomas. Idiomas esses que você os domina e se obrigada a usar. “Os idiomas apinham minha pluma”. Ainda sobre o processo de composição, em qual idioma a poesia vem com mais facilidade? No caso de Não quero ser outra, você escreveu diretamente em nosso português ou a tradução veio depois?

T. I. – Não sei se tem um idioma específico no qual a poesia vem com mais facilidade. Falo fluentemente todos os idiomas que uso (o português ainda está em progresso; escrever é bem mais fácil do que falar kkk) e já criei (quase) em todos eles. Acho que tudo depende do meu contexto e dos meus objetivos.


Cresci falando francês e crioulo haitiano, então quando comecei a escrever poesia, era principalmente em francês, porque era o idioma que mais usava por causa da escola. Mas foi no espanhol que descobri minha voz poética, quando imigrei para a Costa Rica. Lá, passei a escrever principalmente nesse idioma. É nele que estão escritos muitos dos meus textos mais emocionalmente intensos. E como o espanhol teve um papel tão importante no refinamento do meu trabalho como poeta, é um idioma muito forte para mim.


Mais recentemente, depois da publicação do meu livro, tenho escrito mais em inglês, porque está mais alinhado com alguns projetos artísticos nos quais estou envolvida no momento. Então os poemas vêm nesse idioma porque é o foco atual. E o português também tem se tornado prioridade, já que agora moro no Brasil. Curiosamente, mesmo sendo o crioulo haitiano o idioma que mais me dá sensação de casa quando o falo, nunca escrevi um poema inteiro exclusivamente nessa língua!
Mas, eu diria que o português é o idioma menos natural no geral. E sinceramente, todos os idiomas que falo sempre estão presentes no meu processo, porque às vezes as sensações que certas palavras despertam em um idioma são muito diferentes ou nem existem em outro. Então preciso encontrar formas de transmitir isso da melhor maneira possível ou buscar imagens alternativas que funcionem melhor no idioma de escrita.


Não quero ser outra foi originalmente escrito em espanhol, numa época em que eu nem pensava em publicar um livro! Só fiz a tradução quando percebi que meu primeiro livro seria publicado em português. Felizmente, por causa das muitas semelhanças entre os dois idiomas, alguns textos foram mais fáceis de traduzir. Outros deram mais trabalho, principalmente por conta da fonética, que pode ser bem diferente, e isso, às vezes, afetava o ritmo que eu queria manter.

R. N. – Como você vê a produção literária brasileira de nossos dias, em especial a produção feminina? Alguém que produz em nossa língua tem te inspirado?

T. I. – Não estou no Brasil há muito tempo, mas pelo que observei, o desafio parece estar mais relacionado à visibilidade do que à produção. Diferente de outros lugares onde vivi, o Brasil oferece mais oportunidades (um termo que é discutível) de publicação, inclusive algumas direcionadas intencionalmente (parece) a comunidades marginalizadas, incluindo mulheres. No entanto, a maioria das pessoas leitoras nunca tem acesso a elas, porque o discurso dominante continua destacando as mesmas figuras celebradas há décadas. As vozes contemporâneas, diversas e dissidentes, que poderiam enriquecer conversas importantes, permanecem invisíveis. E são exatamente essas vozes que eu gostaria de acompanhar mais. De novo, não é um problema exclusivo do Brasil e muitas vezes, as editoras se beneficiam mais do processo de publicação do que as autoras.

Eu leio principalmente para afirmação e, às vezes, por prazer, mais do que por inspiração. Duas autoras brasileiras cujo trabalho eu realmente gosto são Isabela Ywai e Adelaide Ivánova. A escrita de Isabela é sensível, íntima e existencial, criando imagens que dialogam com os sentidos. Já Adelaide combina política, humor e experiência humana de maneira única e espirituosa, oferecendo joias poéticas que carregam o peso de golpes impiedosos e necessários sem perder o elemento humano. Eu adoro!

R. N. – Finalizamos o papo agradecendo por topar somar com a gente, foi muito gratificante. Nesse espaço, gostaríamos que finalizasse como desejar. Liberdade total. Se gostaria de falar algo que não te foi perguntado, essa é a hora.

T. I. – Quero agradecer pelo espaço para compartilhar meu trabalho e meu processo. Vejo a literatura como uma forma de documentar experiências e criar um arquivo de conhecimento válido. E lembrar que, por trás de cada obra, há uma pessoa, com vulnerabilidades, experiências e desejos de conexão, além do seu trabalho ou do que pode contribuir à sociedade e espero que as pessoas aprendam a se engajar com isso também.


Tamara Isaac

Tamara Isaac é uma advogada, escritora e tradutora haitiana residente no Brasil. Seus poemas foram publicados em antologias costarriquenhas e brasileiras, como Nueva Poesía Costarricense (2020), La Sangre de las Décadas (2021), Bitácora Abierta 2: Entre el Abrazo y la Nostalgia (2024) e O Amor é Um Grito (2024).

Poeta multilíngue, trabalhadora cultural e especialista em justiça da linguagem, Tamara também coorganizou encontros culturais (Museo del Jade, Costa Rica, 2019) e workshops sobre escrita criativa e inteligência artificial (Centro Cultural de España, Costa Rica, 2023). Ela é reconhecida por seu trabalho em justiça da linguagem e inclusão, promovendo espaços multilíngues e acessíveis que abordam temas como política negra, justiça migratória, racial e de gênero.

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