REVISTA NAVALHISTA – Seu primeiro livro de poesia, As primeiras flores de Manhattan (Ópera Editorial, 2023), abriu caminho para a força sensível que vemos em Girassóis Fantasmas. Como você avalia essa obra de estreia hoje? Houve mudanças no processo de criação poética?
RAMON FELIPE – Primeiramente, gostaria de agradecer o espaço e dizer que admiro o trabalho que vem sendo feito por vocês. É uma honra estar com a navalha em mãos (risos). Olha, penso na minha obra de estreia como a realização do sonho de um garoto que sonhava em publicar um livro. Durante muito tempo, publicar me pareceu algo quase impossível. Com o olhar de hoje, percebo irregularidades e até uma certa inocência em As primeiras flores de Manhattan. Eu era bem “verde” quando pensei a obra, mas ela é uma parte muito importante da minha vida. Houve mudanças consideráveis em minha escrita desde então. Na verdade, até aqui, divido a minha poesia em AR/DR – Antes de Regina/Depois de Regina. Sim, isso mesmo. Explico: a Regina a quem me refiro é a poeta Regina Azevedo. Faço tal classificação, pois antes de passar por uma leitura crítica dela, minha poesia era dispersa e imatura. Eu comecei na poesia por instinto, não tive oportunidade de participar de oficinas de escrita criativa ou atividades parecidas. A interação com Regina foi/é muito relevante na minha forma de pensar e escrever poesia. Hoje, escrevo sem pressa, sem me prender a formas, fazendo mais anotações e usando mais as gavetas. O que permanece imutável é o meu desejo de escrever para abrir diálogos, criar conexões, fazer amigos.
R. N. – Nos deparamos, especialmente em As primeiras flores de Manhattan, com referências diretas a músicas, filmes, diretores e escritores, com a poesia dialogando o tempo todo com outras linguagens. O cinema foi um conceito que norteou sua produção poética? De que forma essas referências atravessam seus versos e ajudam a compor a atmosfera dos seus livros?
R. F. – Olha, eu nunca cruzei uma fronteira. Na verdade, só as intermunicipais aqui da região. Venho do chão da fábrica, família simples, nossas vidas acontecem em um raio de 20 quilômetros. Dito isso, na infância e adolescência, não tive acesso a espaços culturais – teatro, cinema, etc. Entretanto, minha mãe é uma artesã de grande sensibilidade, principalmente pela música e cinema. E aí está um ponto muito importante em minha formação. Desde bem pequeno, recebi incentivos por parte dela. Lembro de sairmos para comprar DVDs e CDs. Aquela experiência era a maneira que ela encontrou de me passar um repertório, apesar das dificuldades. Pelo que lembro, aos 8 anos, eu já conhecia e entendia um pouco da arte de gente como Yul Brynner, Zé Ramalho, Amelinha… Hoje, com uma poesia que une a autoficção e a intertextualidade, posso dizer que escrevo um livro como se estivesse compondo um disco ou fazendo um filme. Sou adepto dos biografemas, então para escrever, preciso rememorar/captar uma imagem, uma cena e os seus respectivos sons e cores. Acho que um bom exemplo são os poemas que escrevo em dedicatória às pessoas próximas, com quem tenho amizade e nutro admiração. Se você, caro leitor, ainda não leu algo meu, recomendo a leitura do poema “Novas Cartas Luso-brasileiras”, escrito para minha amiga Eliziane, mestra em Estudos da Linguagem e fã de uma boa xícara de café. O poema foi publicado em livro, em alguns sites e perfis de literatura.
R. N. – No poema “Oração Fugere Urbem”, do livro Girassóis Fantasmas (Caravana, 2024), você demonstra um desejo profundo de escapar do ambiente urbano, talvez porque a sua cidade pesa demais. Como romper, então, com essa rigidez e fugir poeticamente da opressão moderna?
R. F. – Sou de Natal (RN), então ainda não sinto diretamente o peso das metrópoles, mas considerando que esta é uma cidade ainda muito presa a interesses econômicos de pequenos grupos, me preocupa a especulação imobiliária em zonas importantes para a preservação da fauna e da flora. Acho que esse poema traz, na bagagem, um profundo desejo de viver e não apenas existir. Infelizmente, a maior parcela da população se encontra em contextos de sobrevivência, trabalhando muito e ganhando pouco. Quase não há condições para vivenciar experiências com a família, sair para ver o mar, ir ao interior – inclusive o interior de nós mesmos. Outro dia, andando no centro em pleno horário comercial, percebi o quão mágico isso parece. A incidência solar era um sopro de vida em meio ao concreto. Eu realmente temo que o capitalismo se apodere da ideia do fugere urbem da mesma maneira como se apoderou do romantismo. Você já ouviu falar em turismo do sono? Li uma matéria da BBC com o título “O que é o turismo do sono, nova tendência de viagens de luxo”. Em síntese, as pessoas pagam um valor bem considerável para “visitar os campos de criação de ovelhas, porcos e cabras ao entardecer”. E claro, dormir. Ou seja, é o básico se tornando um luxo. Minha cidade tem por volta de 167 km², é uma das menores capitais do Brasil, mas se você for em regiões mais esquecidas da cidade, encontrará pessoas que nunca foram ao nosso maior cartão-postal, o Morro do Careca. Então, é um assunto que é muito, muito complexo. É difícil apontar um caminho imediato para romper com a opressão, mas talvez a contemplação seja uma possibilidade. Algo como no filme “Dias perfeitos”. Mas são várias variáveis envolvidas, e nem sempre é possível exercitar a sensibilidade.
R. N. – Ao dizer que “todo poeta tem a sua Itabira”, você nos lembra do poema de Drummond, “Confidência de Itabirano” onde ele reflete sobre sua identidade e suas raízes em Itabira, as marcas afetivas e saudades. Onde é a sua Itabira? Que lugar ou memória você guarda como mapa íntimo da sua poesia pessoal?
R. F. – A primeira Itabira que me vem à mente é a casa dos meus avós maternos. Já são falecidos, mas há várias memórias daquele lugar, das pessoas que frequentavam a residência nos fins de ano. A primeira poesia visual com a qual tive contato foi a imagem da minha avó, ao fim do corredor, preparando o almoço, enquanto o sol entrava pela janela acima dela e a luz lhe dava ênfase, como a uma artista no centro do palco. Minha avó me contou muitas histórias e alimentou minha fabulação. Semanas atrás, percebi que já são dezesseis anos desde que ela partiu. Eu tenho alguns medos bem agudos, e um deles é esquecer como era a voz de Dona Heloísa.
R. N. – Sabemos que a docência enfrenta tempos difíceis, faltam políticas de valorização, há um desinteresse crescente pelas licenciaturas e o escritor, muitas vezes, sente o reflexo sendo levado à margem. Como você sustenta, na prática e na sensibilidade, esses dois universos tão exigentes e, ao mesmo tempo, tão fundamentais para a formação humana?
R. F. – Aproveito para citar quatro professoras que marcaram minha trajetória: Teresa Vasconcelos, Dinalva Tavares, Louize Moura e Angéllica Porto (uma ótima escritora). Em um país tão desigual, a educação é uma das principais esperanças para alcançar melhores condições de vida. Considerando tal fator e o sistema, percebo que a educação está bastante voltada ao mercado, perdendo o teor da formação humana. Não acho que devam andar distantes, mas a balança está desproporcional. Por exemplo, acho um absurdo que a filosofia seja mal vista por não proporcionar um status e um “retorno social”, sendo que ela é uma base para o pensamento crítico que temos no Ocidente. E quanto ao exercício de lecionar, mesmo sendo como uma matriz para todas as profissões, o professor segue enfrentando o descaso de uma remuneração ínfima e condições de trabalho adoecedoras. Importante: penso que nem tudo é “terra devastada”. Os institutos federais, por exemplo, são uma referência de ensino público de excelência. É o tipo de coisa que me renova as esperanças. Quanto à escrita, eu busco sempre ter um momento do dia para leitura e escrita. Claro, há dias em que sou vencido pelo cansaço e só consigo ler as notícias do dia e o pouco que escrevo é a lista de compras do supermercado (risos). Ser autor é desafiador na medida em que há poucas oportunidades para mostrar o trabalho, conseguir leitores, financiar e tornar viável a publicação. Em alguns momentos, é muito fácil se sentir como um fantasma – na docência e na literatura.
R. N. – Entre o ofício da palavra escrita e o da palavra ensinada, existe um ponto de intersecção que parece estar ligado à sua trajetória. Você se sente mais escritor ou professor?
R. F. – Uma pergunta difícil. Eu diria que me sinto mais um escritor, porque foi a palavra escrita que me levou à sala de aula. Quando comecei a cursar Letras, sonhava em declamar poemas para minhas turmas, algo bem ao estilo de “Sociedade dos Poetas Mortos”. Claro, os papéis se complementam, pois a linguagem literária é uma parte imprescindível de quem sou – inclusive como professor.
R. N. – Todo poeta tem um lado filósofo, jogador frustrado ou músico nas horas vagas, ou tudo isso junto. Imagine que estamos numa mesa de bar. De repente, vem a pergunta: O que pensa do mundo, assim, sem muita pose? E tem alguma outra forma de expressão artística com a qual você também se arrisca ou gostaria de se jogar?
R. F. – Do nada, lembrei de Albert Camus (risos). Sou um goleiro frustrado (risos). Na infância, queria ser como Rogério Ceni. Acho que o mundo é um mistério incrível. São tantas variáveis envolvidas. Por exemplo, enquanto estou concedendo esta entrevista, alguém está sobrevoando uma cordilheira, uma doutoranda escreve sobre literatura genética, um casal apaixonado está no cinema, um maldito político faz tramoias. Há um paradoxo que conecta e divide o mundo. Alguns gestos são universais, outros não são. Olha, eu adoraria me jogar na música, tocar em uma banda de rock, ouvir o público cantar junto em um desses festivais literários. Até tenho algumas composições feitas em parceria com o músico Giovany Nascimento, mas ainda não apresentamos para um público maior. Inclusive, comecei a escrever por querer ser letrista, algo como Bob Dylan, Cazuza, Dulce Quental…
R. N. – A poesia de Girassóis fantasmas toma a forma de escuta amorosa e atenta às miudezas da vida, que acumulam paixões e saudades. Na sua leitura, o que faz um poema ser bonito? É o tema, a forma, ou a maneira como ele desbaratina os sentidos?
R. F. – Na minha opinião, o que faz um poema ser bonito é a maneira como ele envolve os sentidos. Independentemente do tema e da forma, seja uma ode ao inverno ou uma denúncia, considero belo o poema que, após a leitura, me faz erguer a cabeça e querer falar dele para as pessoas. Acho que o ser humano pode deixar de fazer muitas coisas, mas nunca deixará de sentir. Por isso, belos poemas sempre existirão. A história prova isso. Dulce Maria Loynaz escreveu belos poemas, Maíra Dal’Maz escreve belos poemas.
R. N. – Em tempos tão ruidosos, em que as palavras muitas vezes se esvaziam de sentido, para você, qual é o papel da poesia hoje? E o que você espera que o leitor sinta ao encontrar seus livros pelo caminho?
R. F. – Acho que o papel da poesia segue sendo o papel de nos permitir transcender em meio aos vários segmentos da vida. Considerando a poesia como algo que antecede o texto, precisamos dela nos momentos de gozo, de cansaço, de revolução. Espero que em meus livros os leitores encontrem isso e um pouco mais.
R. N. – Sua poesia traz temas como o silêncio, a memória, o exílio interior e a beleza do cotidiano com um lirismo maduro e contido. O que você busca despertar no leitor? Há um sentimento ou uma inquietação central que orienta o que você escreve?
R. F. – A finitude me norteia. Em 2125, não estaremos mais por aqui, mas as nossas ideias e ações terão seus ecos – em maior ou menor proporção. Busco despertar no leitor a visão de que o tempo está passando e devemos ir ao encontro da vida.
R. N. – Depois de As primeiras flores de Manhattan e Girassóis Fantasmas, leitores certamente aguardam novos passos. Você está com alguma produção em andamento? Pode nos contar um pouco sobre os caminhos que tem explorado agora, seja na poesia, na prosa ou em outras linguagens?
R. F. – Antes de responder a esta última pergunta, quero agradecer, mais uma vez, o espaço e desejar muito sucesso para a Navalhista. Então, acabo de escrever um novo livro. Ele se chama “Corvos à beira-mar”, e na minha simples opinião, é o meu melhor trabalho até aqui. Por ironia, é um projeto que começou em um dos momentos mais difíceis da minha vida. Durante esse tempo, dentre as coisas que fiz, escutei os Racionais, estive em uma exposição com meu pai e me aprofundei nos textos de Camus. De certa forma, foi como um diário que me ajudou ao longo de sete meses muito intensos. Estruturada em três partes, a obra simula a jornada desses seres alados até a beira-mar. Ao mesmo tempo, serve como uma metáfora para alguém buscando trilhar o seu caminho em meio aos desafios do mundo moderno. É um livro político, introspectivo, humano. Ainda não assinei com nenhuma editora, mas posso adiantar que a obra conta com prefácio da poeta e jornalista Laura Redfern Navarro (vencedora do ProAC – 2022) e orelha escrita pela poeta e produtora cultural Flora Miguel – duas pessoas bem importantes para o projeto. Acho que “Corvos à beira-mar” é a minha maneira de dizer que “é preciso imaginar Sísifo feliz”.
Gostaria de finalizar a entrevista com um poema do poeta palestino Mahmoud Darwish (1941 – 2008):
Pense nos outros
(Mahmoud Darwish)
Enquanto você prepara o seu café da manhã, pense nos outros;
[Não se esqueça de alimentar os pombos]
Enquanto você trava suas guerras, pense nos outros;
[Não se esqueça daqueles que pedem a paz]
Ao pagar a sua conta de água, pense nos outros;
[Que buscam sustento nas nuvens, não em uma torneira]
Enquanto você volta para casa – para sua casa – pense nos outros;
[Como aqueles que vivem em tendas]
Enquanto você dorme contando planetas, pense nos outros;
[Quem não consegue encontrar um lugar para dormir]
Enquanto você se liberta das metáforas sofisticadas, pense nos outros;
[Que perderam o direito de falar]
E enquanto você pensa nos outros, distantes, pense em você;
[E diga: Quem dera que eu fosse uma vela na escuridão]”
* Tradução feita pela redação da Revista Libanus

Ramon Felipe nasceu em Natal, capital do Rio Grande do Norte, no final do século XX. Graduado em Letras e pós-graduado em Docência no Ensino Superior, o professor dedica-se à poesia enquanto poiesis, isto é, ao processo de criação e ao exercício metalinguístico/intertextual. Em 2021, recebeu certificado por trabalho em destaque no Festival Literário de São Miguel do Gostoso.