NAVALHAR É PRECISO – KAHEL SANTOS [entrevista]
NAVALHAR É PRECISO – KAHEL SANTOS [entrevista]

NAVALHAR É PRECISO – KAHEL SANTOS [entrevista]

REVISTA NAVALHISTA O livro Feriado das Incertezas (e outras ponderações) está dividido em atos, como uma peça de teatro. No primeiro ato, o lirismo aparece embalado pela festa, mas ameaçado pela ressaca emocional. Existe alguma data que você transformaria em feriado pessoal? E como essa ideia dialoga com o primeiro ato do livro?

KAHEL SANTOS Acho que transformaria em feriado qualquer dia em que a vida tenha me surpreendido, não necessariamente por algo grandioso, mas por um detalhe mínimo que tenha me feito mudar de rota. Pode ser um domingo em que nada deu certo, mas que acabou rendendo uma conversa boa na cozinha. Esse é o espírito do primeiro ato: a festa como começo, a ressaca como consequência, mas também como ponto de virada.

R. N. — Seu livro é descrito como um mergulho no tempo afetivo, que contrasta com o tempo cronológico. Vamos começar de forma didática. Para você o que é um “feriado das incertezas” fora do livro? Como você enxerga essa escolha estética na estrutura da obra?

K. S. — O “feriado das incertezas” fora do livro é essa pausa não planejada que a vida nos impõe  (ou que a gente mesmo se permite) para respirar no meio do caos. Não é sobre parar para descansar, mas para olhar de outro jeito. Na estrutura do livro, essa ideia cria um espaço entre o tempo cronológico e o tempo emocional, permitindo que o leitor entre e saia sem pressa, como se folheasse um álbum de memórias desalinhado.

R. N. — Teus poemas têm ares de carta, diário e muito fortemente se escuta a trilha sonora composta por artistas indie. E existe uma influência direta da linguagem visual do cinema e da fotografia no seu processo criativo. Quando escreve, você sente que está desabafando para alguém específico ou criando uma cena como se fosse um filme?

K. S. — Quando escrevo, sinto que é um pouco dos dois. Há momentos em que estou, sim, escrevendo para alguém específico (mesmo que essa pessoa nunca leia). Mas também vejo cada poema como um frame congelado, com uma paleta de cores e sons próprios. É como assistir um filme que existe só na minha cabeça.

R. N. — A cidade de São Paulo aparece como uma personagem intensa, quase cruel. Que tipo de relação simbólica e afetiva você tem com essa cidade? E se você pudesse colocar o seu livro Feriado das Incertezas dentro de uma mala e levá-lo para um lugar fora do mapa da capital, qual seria e por quê?

K. S. — São Paulo é uma personagem que te engole e te oferece um cafézinho na sequência. Tenho uma relação de amor e exaustão com a cidade. Se pudesse levar o livro para longe, escolheria uma cidade pequena litorânea. Não para fugir, mas para ver como as palavras reagiriam ao silêncio, à maresia, ao tempo mais lento.

R. N. — Poemas como “Carnavrau” e “Manual Incompleto para Apagar Vestígios” falam de festas, glitter e manchas. Algum desses versos nasceu de uma situação real, daquelas que a gente vive e depois pensa “isso vai virar poema”? E qual foi a mancha literária que a vida deixou que nem sabão de verso tira?

K. S. — Sim, alguns versos saíram direto da vida real, suados e com glitter. “Carnavrau” foi escrito depois de um carnaval em que voltei para casa carregando mais histórias do que ressaca. A “mancha literária” que não sai é sempre a sensação de que alguns encontros deixam marcas que nenhum poema limpa.

R. N. — Você escolheu repetir “Continuar Existindo” nos três atos do livro. Qual a intenção por trás dessa repetição em espelho? E já rolou de você ler um desses momentos e pensar “caramba, fui eu mesmo que escrevi isso?

K. S. — A repetição de “Continuar Existindo” é um lembrete de que essa é a única tarefa realmente constante, não importa o ato. Já me peguei relendo e pensando: “nossa, porquê isso está soando diferente agora?” O que é ótimo, porque significa que o poema continua me surpreendendo.

R. N. — Títulos como “Lejos de ti”, “Rapidinha” e “Pingas ni mim” misturam humor e dor. Algum deles você escreveu “rindo de nervoso”? E como o humor agridoce funciona pra você como linguagem poética? São alívio, ironia, escape?

K. S. — Já escrevi rindo de nervoso, sim. O humor agridoce funciona para mim como freio e válvula de escape. É ironia, mas também é afeto, a forma mais honesta que encontrei de lidar com o peso sem deixar que ele me esmague.

R. N. — Você celebra as falhas e microalegrias como partes fundamentais da existência. Isso é uma maneira de ressignificar o fracasso? E se em algum momento o seu livro “Feriado das Incertezas” se transformasse num oráculo moderno, tipo “abra uma página e leia o seu destino de hoje”, qual seria sua recomendação? E qual verso seu você tatuaria no braço para nunca esquecer de continuar existindo, mesmo nos dias de silêncio e café frio?

K. S. — Sim, é ressignificar o fracasso. É entender que a vida é feita de tentativas. Se o livro virasse um oráculo, recomendaria: “abra ao acaso e aceite o que vier”. E o verso que tatuaria no braço seria: “continuar existindo”.

R. N. — No poema “Quando fevereiro morre dormindo”, há uma morte simbólica entre o amor e o cotidiano. Como o pós-pandemia influenciou essa sensibilidade no seu olhar poético? E como o tarô e os pequenos rituais entram como linguagem simbólica nos seus versos?

K. S. — O pós-pandemia acentuou meu olhar para o frágil. Aprendi a observar o que antes passava despercebido. O tarô e os rituais entram como uma forma de traduzir a intuição, de transformar pressentimentos e sensações em imagens poéticas.

R. N. — A presença de referências como Murakami, Monica Vitti e a rua Augusta cria um percurso afetivo pop e regional. Alguns poemas parecem ter trilha sonora própria, a exemplo de “Quando fevereiro more dormindo” e “Carnavrau” Como você escolhe essas imagens? E se o Feriado das Incertezas fosse transformado num álbum musical, qual música abriria e qual fecharia esse álbum?

K. S. — Escolho imagens como quem monta um mural no quarto: colando referências que me fazem sentir algo, não importa se vêm de um filme, de uma rua ou de uma memória. Se fosse um álbum, abriria com “In the Aeroplane Over the Sea”, do Neutral Milk Hotel, e fecharia com “Fora do Meu Quarto”, da Sophia Chablau e uma Enorme Perda de Tempo.


Kahel Santos

Kahel Santos, nascido em 1994 em Ribeirão Preto, mudou-se para São Paulo em 2017 para trabalhar e explorar novas possibilidades criativas. Estudou Publicidade e Propaganda na UNAERP, e sua trajetória como redator e criador de conteúdo é marcada por um profundo envolvimento com narrativas visuais. Com experiências no mercado audiovisual, Kahel construiu uma carreira que reflete sua paixão por contar histórias, sempre influenciado pelo cinema e pela fotografia. “Feriado das Incertezas” é seu livro de estreia, que começou a ser concebido durante o período de pós-pandemia, uma época de desafios emocionais que ampliou o olhar do autor sobre as dúvidas que cercam as relações e individualidades humanas. A obra é o resultado de três anos de escrita.

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