REVISTA NAVALHISTA – Lançado no final do ano passado, eclipse saiu pela Editora Patuá. Hermes Coêlho, comecemos por seu nome. A letra “H”, que carrega a marca do silêncio, ocupa um lugar central na sua poética. Como foi para você esse processo de ressignificar um símbolo que antes era dor e torná-lo linguagem, resistência, presença nos poemas?
HERMES COÊLHO – Gosto de dizer que sangro poesia. Meus traumas e percalços viram verso, tanto que compus a Trilogia do Trauma (formada por Nu, Violado e eclipse). Tem uma traboule de Lyon dentro de mim que me leva a esses lugares secretos e inusitados onde meu inconsciente tenta esconder a dor. A poesia me faz descer lá e encarar de frente. Violado, por exemplo, ressignifica os abusos sexuais que sofri na infância – o menino violado vira violão. eclipse traz meu trauma mais recente – a descoberta de que vivo com HIV. Não tinha como não brotar um rio poético daí. Trazer à luz todo um conjunto de pessoas e signos geralmente invisibilizados. O H entra com essa força de ressignificação logo de cara – cicatriz que insiste em se mostrar, a despeito das tentativas de silenciamento. H de Hermes, de homem, de homossexual, de HIV, de humano.
R. N. – Seu livro transita entre dor e desejo, entre silenciamento e libertação. Como foi o processo de transformar experiências tão íntimas em matéria poética? Houve resistência interna? Medo? Ou escrever foi uma urgência?
H. C. – A escrita sempre se impõe. Não tive escolha a não ser deixá-la vir e tentar moldar da melhor maneira a trilha de versos que viriam. Não tive resistência interna em escrever. A decisão de publicar é que foi bem posterior. Para levar eclipse para os leitores eu teria que sair do segundo armário, o de viver com HIV. Poucas pessoas sabiam de minha sorologia. Mas a poesia sempre fala mais alto.
R. N. – Na segunda parte de Eclipse, a soropositividade não aparece apenas como tema, mas como ruptura estética. Como essa descoberta atravessou sua escrita, influenciando o tom, as imagens e até o vocabulário?
H. C. – Boa pergunta. eclipse quebrou o molde poético que me sustentava até aquele momento. Desfez as certezas todas. É como se um novo escritor emergisse da experiência mais traumática que eu tive. Precisava mostrar isso de maneira clara em versos. Por isso, a cera quente da vela derrete o poeta até os ossos. Para revelar uma nova poesia.
R. N. – Seu corpo vulnerável, poético, erótico pulsa o tempo todo na sua escrita. Como foi construir essa poética em que o corpo é tanto ferida quanto celebração? Em que momento o corpo deixou de ser escondido e passou a ser assumido como centro do verso?
H. C. – Uma das provocações de eclipse é tornar esse corpo visível, eroticamente ativo e desejado. Uma das chagas que assolam as pessoas que vivem com HIV é que elas são vistas como um perigo social e devem ser excluídas (principalmente do altar do desejo, da alcova, das camas). Sendo que, para as pessoas diagnosticadas com o vírus e que fazem o tratamento corretamente, a vida sexual é normal – nos tornamos indetectáveis, incapazes de transmitir o HIV. Quando os poemas do livro começaram a ser escritos eu estava saindo do processo de luto e começava a me permitir viver minha sexualidade de maneira plena. Esse corpo precisava virar poesia, ser visto e celebrado novamente. Os poemas eróticos do capítulo invisíveis são fruto desse renascimento.
R. N. – Na parte “Divindades”, você convoca deuses, entidades e mitologias numa espécie de altar subversivo. Conte-nos: como essa espiritualidade múltipla dialoga com as dores da exclusão e as possibilidades da arte como fé?
H. C. – A fé traz possibilidades artísticas maravilhosas, se não deixamos que ela seja cega, se torne um filtro delimitador do que é bom ou ruim. Não acredito em religião que não traga acolhimento, amor, empatia. Eu fui criado por uma família evangélica, nos bancos de uma igreja Batista. Meu primeiro livro, Nu, traz versos que mostram esse embate juvenil contra a fé imposta. Os anos que vieram me tornaram um tanto iconoclasta. divindades reúne todas as mitologias, deuses e lendas nesse altar orgástico como uma provocação. Para muitos, a religião alheia é sempre vista como mitologia, como algo inferior. Já eu rezo de joelhos para todos os deuses e santos que estiverem dispostos a me responder.

R. N. – Hermes escreve sangrando, mas também com muita delicadeza. A palavra, no seu livro, parece servir como reconstrução íntima, mas também como denúncia pública. Que papel você acredita que a poesia pode ter na afirmação de identidades e afetos dissidentes? Há algo nela que ainda pode curar ou ao menos reorganizar o caos?
H. C. – Gosto de pensar que sim. A poesia é capaz de tornar visível aquilo que não queremos ou não conseguimos enxergar. Ela nos leva a uma reflexão que pode nos ajudar a compreender melhor o mundo. Ela me permite sentir as dores do poeta palestino Refaat Alareer (morto na Faixa de Gaza em dezembro de 2023 durante a guerra que continuamos a acompanhar pelo noticiário), sem conhecer de fato a dura realidade dele e de seu povo. É um instrumento magnífico para dar voz aos que geralmente são silenciados – seja um povo, um grupo minoritário, pessoas que lidam com diagnósticos sensíveis. E que bom que, cada vez mais, nossas vozes estão sendo ouvidas.
R. N. – O que você gostaria que os leitores encontrassem em seu eclipse? Está tudo lá ou o livro é apenas uma parte de um processo mais longo de expressão e elaboração? Há algo que ficou por dizer? Há novas camadas surgindo com o tempo?
H. C. – Poeticamente, está tudo lá, até o que fica nas entrelinhas para o leitor elaborar comigo. Meus livros são feitos para que o leitor atue ativamente, apreenda e ressignifique os versos. Para mim, é uma etapa cara da poesia. Tem muita prosa emergindo de mim nos últimos meses. Crônicas, contos. Estou imitando Clarice Lispector e guardando escritos e ideias na gaveta para ver a forma que vão tomar no futuro.
R. N. – Considerando as discussões atuais sobre a diminuição no número de leitores no Brasil, e que uma obra, com a força da linguagem poética e do testemunho íntimo, pode colaborar para resgatar o interesse pela leitura, você se vê como um autor que atua também no campo da formação de leitores? Quais caminhos a literatura pode percorrer para voltar a tocar mais corações e mentes, especialmente entre os jovens?
H. C. – Eis o grande desafio – formar novos leitores, ainda mais neste cenário em que o acelerado mundo digital domina as atenções. Sinto que existe espaço crescente para a poesia no universo das redes sociais. Como, por exemplo, os influenciadores que postam poemas ou declamam versos. É um trabalho que chega longe, chega aos olhos de quem não tem o hábito de abrir um livro, inspira a conhecer mais daquele autor. Mas, confesso, o esforço tem que começar dentro de casa (independentemente das demais esferas educacionais posteriores). É como vejo minha irmã mais nova, uma médica pouco afeita à leitura de livros que não sejam técnicos, e que está conseguindo fazer de minha sobrinha uma ávida leitora de obras infantis. O exemplo em casa fala alto. Também penso que é preciso voltar nossos olhos para a formação de leitores tardios, descobrir caminhos para que eles possam expandir seus horizontes. Me entristece perceber que a maioria de nossos leitores tardios leem somente livros de cunho religioso. Isso é extremamente limitador.
R. N. – Por fim, o abraço. Esse espaço final é para isso, um abraço e que o/a entrevistado/a use para o que desejar. Fale o que quiser, para quem quiser. Liberdade extrema. Agradecemos imensamente por essa conversa.
H. C. – Eu que agradeço a vocês. O trabalho que fazem é importante, ainda mais no atual cenário contemporâneo. Que sua navalha continue afiada. Quem sangra poesia aprecia cortes profundos.

Hermes Coêlho é poeta e jornalista, formado pela Universidade Estadual do Piauí. Nascido em Teresina-PI, vive em Brasília desde 2010. É chefe de reportagem da TV Senado e apresentador do programa Cidadania. Em 2000, venceu o Concurso Novos Autores – Prêmio Cidade de Teresina, com seu primeiro livro, “Nu”. Em 2023, publicou, pela editora Patuá, “Violado”. “eclipse”, publicado pela Patuá em 2024, conclui a “Trilogia do Trauma” do autor.