Narciso e o Hábito: os paradoxos de um Narciso feio [resenha]
Narciso e o Hábito: os paradoxos de um Narciso feio [resenha]

Narciso e o Hábito: os paradoxos de um Narciso feio [resenha]

por Andreia Santos,

escritora e colunista na Revista Navalhista

(perfil completo)

Narciso e o Hábito, de Felipe Nomura Honorato, é um romance que une lirismo, crítica cultural e introspecção filosófica. O título antecipa ao leitor a dualidade que atravessa a obra: o espelhamento narcísico da identidade e a rigidez do hábito como forma de contenção ou mesmo de alienação. Com uma escrita refinada, permeada por intertextualidades e um senso estético apurado, Honorato apresenta um texto que desafia o lugar-comum da literatura contemporânea e convida à contemplação crítica de si e do mundo. A escrita é marcada por digressões densas, construções sintáticas elaboradas. Percebe-se a construção de um eu que se interroga continuamente, que se decompõe e se reconfigura à medida que o texto avança.

A obra gira em torno de Narciso, personagem que não é apenas um sujeito, mas também um espelho — aquele que vê e, ao mesmo tempo, é visto. A figura mitológica é ressignificada: Narciso não está enamorado de sua própria imagem, pelo contrário, ele nasceu feio, desta forma torna-se obcecado por compreender a natureza do reflexo. […] ele era belo apesar de ser um jovem feio […], (p.34). O hábito, por sua vez, funciona como metáfora de um automatismo social e existencial que se impõe como forma de contenção do desejo, da rebeldia e da autenticidade. Honorato (p.46), escreve: […] “O hábito é o espelho embaçado onde Narciso busca sua imagem com avidez, sem saber que ela já foi perdida no primeiro gesto de repetição” […]. Essa citação resume com precisão a crítica do autor à padronização da subjetividade, à vida guiada por normas que se perpetuam sem questionamento.

Cada capítulo parece funcionar como uma peça de espelho, refletindo ângulos distintos do protagonista. A linguagem é densamente metafórica, e Honorato demonstra habilidade em evocar imagens potentes, como ao descrever a rotina como “um rosário de horas engolidas em silêncio” (p. 78) ou ao definir a memória como. Essa metáfora, longe de ser apenas adorno estilístico é chave interpretativa para o sentido mais profundo do texto.

A figura de Narciso é explorada não apenas como um arquétipo mítico, mas como um sujeito descentrado, ladeado por lacunas e desejos reprimidos. Outro aspecto a ser ressaltado é a sensibilidade com que o autor aborda a performatividade das identidades sendo o corpo é um campo de batalha simbólico, como sugere o trecho […] “Respirava profundamente, as calças arreadas, o corpo pedindo serotonina e endorfina. Meditava” […] Trata-se de uma obra profundamente engajada com as discussões contemporâneas sobre subjetividade, gênero e autonomia, sem jamais cair na armadilha do panfleto ou da tese didática.

Narciso e o Hábito é uma obra densa, que exige do leitor não apenas atenção, mas entrega. Sua leitura é desafiadora, e por isso mesmo recompensadora. O romance é um chamamento ao desassossego, à reflexão sobre o que nos constitui e, sobretudo, ao questionamento do que chamamos de identidade. Uma obra que, como o próprio Narciso, nos devolve o olhar — não para nos contemplarmos, mas para nos interrogarmos.

Honorato empreende uma construção literária notavelmente introspectiva e simbólica, na qual temas como identidade, fé, delírio e transcendência existencial são tratados com lirismo e densidade filosófica. A obra revela não apenas um protagonista dividido entre pulsões e estruturas sociais, mas também um autor comprometido com uma escrita que desafia convenções narrativas.

O texto é marcado por uma prosa fluida, sensorial e marcada por imagens potentes. A construção frasal oscila entre a densidade reflexiva e passagens de cunho lírico, o que dá ao texto um ritmo próprio, por vezes onírico. Essa oscilação é visível, por exemplo, no momento em que Narciso, tomado por febre e delírios, se entrega à dissolução dos sentidos: “Ali, os delírios se fortaleceram e, tão surreais que se tornaram efêmeros, imagens aleatórias, em vidas passadas e futuras. Estava ardendo a quarenta graus, com muito medo, até sentir um corpo colado ao seu. Os lábios foram lhe tocando e, mesmo que ele quisesse pudesse impedir e evitar, deixou-se cair na teia do corpo.” (p. 60). Neste caso, ao experienciar o delírio, ele confunde com a epifania do toque, neste sentido o corpo é território da memória, do desejo e da transcendência.

O enredo não se desenvolve linearmente, mas sim como um percurso interior que mescla lembranças, devaneios e fragmentos de realidade. Narciso é uma figura em constante fuga — não apenas física, mas espiritual. Sua tentativa de retornar à vida religiosa, após experiências que o exilam socialmente, é narrada com ironia e melancolia: “Com o tempo, que cura qualquer cicatriz, Narciso decidiu voltar à vida devota. Retornou à casa dos pais, foi recebido com grande prestígio, mas logo o pedido foi feito: ‘Sabe aquele terreninho abandonado no interior? Posso morar lá por um tempo?’” (p. 88). O gesto de retraimento, longe de representar um retorno sincero à fé, parece indicar um desejo de dissolução, de apagamento simbólico, de morte lenta da identidade socialmente construída.

Narciso e o Hábito é, portanto, um romance que não se entrega facilmente. Exige leitura atenta, sensível e, sobretudo, disponibilidade para o desconforto. Sua linguagem é artística, mas nunca gratuita. Seu conteúdo é existencial, mas sempre atravessado por questões concretas: o pertencimento, a sexualidade, a fé, o exílio. Honorato escreve como quem interroga o abismo — e não se contenta com respostas fáceis.

Não se trata de saber quem foi Narciso, mas de perceber o quanto ele devolve, com crueza, aquilo de que somos feitos: sujeitos à margem do espelho, entre o delírio e o hábito, entre o que nos foi dado e aquilo que ousamos desejar.


Felipe Nomura

Nomura Honorato nasceu em 1998, passou a infância no Japão e atualmente reside em Itajaí, Santa Catarina. Viveu sua adolescência na psicodelia e sua juventude como vocacionado a carmelita descalço. Hoje é casado com Isabele e pai de Vicente e Paulo. Sua obra transita entre o hermetismo literário e a introspecção simbólica, sempre dialogando com a espiritualidade, a filosofia e o grotesco.

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