REVISTA NAVALHISTA – Bicho geográfico (Editora TAUP, 2025) é sua estreia literária. Ao abrir o livro, já nos deparamos com um prefácio de um dos críticos literários mais solicitados do momento, Bruno Inácio: “A matéria-prima de Bicho geográfico, de Marina Faloni, passa pela angústia e pelo desamparo”. Você concorda? O que te angustia? Que desamparo é esse?
MARINA FALONI – Bruno Inácio foi muito feliz ao utilizar o verbo “passar” e, no parágrafo abaixo, complementar com “a autora traça todo o itinerário de uma relação que não se concretizou”. Isso porque o livro não se debruça apenas sobre a angústia ou desamparo, mas sim sobre o todo o processo de apaixonamento, desilusão, raiva e superação. Não tenho nenhum receio em dizer que o livro surgiu a partir de experiências pessoais. E, portanto, os sentimentos de angústia e desamparo aqui são bastante particulares, mas, em alguma medida, universais. Eles surgem de relações vazias e nas quais não existe responsabilidade afetiva. Contudo, acredito que eles vêm também de dentro, de desejos e expectativas que depositamos sobre o outro e para os quais, em verdade, não podemos exigir correspondência.
R. N. – “És um verme:/ Bicho geográfico que caminha na planta dos pés/ impedindo minha própria caminhada”, diz, ao longo do poema-livro. Que Bicho é esse? Como ele se transformou em livro?
M. F. – Esse Bicho é um homem. Alguns poemas foram escritos quando eu me relacionava com esse homem, algum outro foi criado a partir de uma carta. Essa relação, se é que podemos chamá-la assim, durou cerca de dois anos, com muitos hiatos, caminhos tortuosos, prazer e dor. Com toda sinceridade, o livro não existia quando a editora Toma Aí Um Poema abriu a chamada de originais de 2024. Eu tinha apenas esses textos avulsos, todos eles usando a geografia como ponte para tentar me comunicar com esse homem, que é um geógrafo. Mas havia neles elementos comuns: o (des)amor e a geografia. Coincidentemente, já fazia um ano que eu havia começado a trabalhar com habitação e desenvolvimento urbano, o que me deu uma grande base sobre geografia urbana. Então pensei que poderia, começando por esses três textos, produzir outros que completassem os vinte poemas mínimos exigidos pela editora. Fui escrevendo todos os dias durante cerca de um mês e cheguei a cerca de trinta e cinco poemas, sendo que trinta permaneceram no livro. Como diz a primeira orelha do livro “Bicho Geográfico se fez no caminho de uma obsessão”. Uma obsessão pelo desejo de publicar, pelo desejo de reparação e de autoanálise.
R. N. – Durante a produção, naturalmente, alguns poemas foram descartados. Faz pensar sobre o que torna um poema “bom”. O que é um bom poema para Marina Faloni?
M. F. – Acredito que um poema se faz a partir da ressignificação das palavras. É a partir da possibilidade de trazer às palavras e expressões significados que não sejam aqueles tradicionalmente aplicáveis a ela. Meus poemas, em particular, carregam como principal elemento as metáforas. Assim, se não consigo transformar essas significâncias, entendo que o poema acaba por se tornar pobre.
R. N. – Ao final do livro, você faz alguns agradecimentos. Dentre eles, ressaltamos um: “À minha analista, que contribuiu imensamente para a elaboração de diversas circunstâncias vividas, inclusive as dores e delícias de publicar minhas palavras”. Como que o processo de análise se alinhou e estimulou o processo da escrita?
M. F. – Na verdade entendo que é uma via de mão dupla: a escrita se alinha com a análise e vice-versa. Sempre escrevi como mecanismo de elaboração de minhas próprias experiências. A escrita me ajuda a compreender minhas vivências e os pensamentos e sentimentos que elas despertam. Mas a análise também me ajuda a compreender o que escrevi. Diria que minha escrita é muito intuitiva e só consigo compreendê-la depois de tomar algum tempo e então ler novamente. Outras vezes, só consigo escrever sobre experiências que passaram por elaboração durante a análise, tamanha a dor que me provocaram. Acredito que a escrita e a análise são, para mim, diferentes processos de autocompreensão, mas que acabam por se comunicar.
R. N. – Quais são os bichos-referenciais de sua vida? Estamos falando das “inspirações”.
M. F. – Minhas inspirações referem-se especialmente às relações humanas e, mais recentemente, dinâmicas territoriais urbanas. Muito me motiva também a escrita sobre a criação do próprio poema, ainda que não seja um tema sobre o qual eu escreva. Isso pois a compreensão da construção e da função do poema me motiva a fazer uma poesia que seja voltada a repensar estruturas poéticas, sociais e políticas. Tanto é assim que a epígrafe de Bicho Geográfico diz “o poema cerze/o que não tem reparo”. A poesia serve, para mim, para imaginar outros mundos possíveis ou simplesmente nos consolar sobre a realidade.
R. N. – E pensando em arte, pensando em poesia e vida literária, você poderia citar alguns nomes que não esses bichos-referenciais? Quem e como te inspira?
M. F. – Minhas referências vêm, majoritariamente, da literatura e música brasileiras. De modernos a contemporâneos. No campo dos modernos, carrego a poesia de Drummond, Vinicius de Morais, Manoel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Leminski. Na prosa, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector. Entre os poetas contemporâneos estão Marília Garcia, Ana Martins Marques, Bruna Beber, Alberto Pucheu. Na prosa contemporânea, Itamar Vieira Junior e Conceição Evaristo. Na música, especialmente a tropicália, alguns malditos e a nova MPB: Bethânia, Caetano, Gil, Gal, Angela Ro Ro, Itamar Assunção, Liniker, Anelis Assunção, As Baías, Luedji Luna. Todos esses me inspiram sobre a possibilidade de repensar a existência, o amor, as relações sociais e a construção do poema.
R. N. – Percebemos em Bicho geográfico um efeito catártico. Um estágio de purificação, talvez. Estamos muito errados? Fale sobre isso.
M. F. – Estão corretos. Como disse em uma das perguntas anteriores, o livro traça o caminho de uma relação falha, desde o apaixonamento até a superação. Também, na pergunta sobre a análise, mencionei que a escrita para mim é um processo de elaboração de minhas próprias experiências. Assim, Bicho Geográfico é um caminho do luto, da aceitação da perda. Uma autopurificação.

R. N. – “O livro traça o caminho de uma relação falha, desde o apaixonamento até a superação.” Pensando nessa literatura que veio ao mundo graças a algo que não deu certo, propomos a seguinte divagação: Certo dia, o Destino materializou-se em um ser e te ofereceu uma escolha. Você poderia escolher entre viver o resto dos seus dias com sucesso absoluto na literatura ou sucesso absoluto no amor. Um anulando o outro, claro. Qual você escolheria? Por quê?
M. F. – Escolheria o sucesso absoluto no amor. Minha carreira literária é ainda um bebê engatinhando. Portanto, não conheço o sucesso literário. Mas mesmo que Bicho Geográfico trate de uma experiência traumática, conheço, em alguma medida, o sucesso no amor em suas diversas formas: o amor romântico, o amor familiar, o amor entre amigos. E acredito que seja mais fácil renunciar ao desconhecido do àquilo que nos é familiar. Além disso, não posso viver sem amor. A ausência do amor, para mim, é ausência de vida. Assim, se o sucesso na literatura anulasse o amor em minha vida, minha existência seria vã.
R. N. – Essa pergunta sempre fazemos a quem está publicando o primeiro livro: quais as maiores dificuldades que você enfrentou, desde o momento em que decidiu que sua obra estava pronta até hoje? Pensando em ajudar quem está prestes a trilhar o mesmo caminho, quais as melhores saídas/dicas?
M. F. – Meu livro foi publicado através de financiamento coletivo, sendo que a campanha teve muito sucesso. Por outro lado, enfrento vários custos para publicação de outros conteúdos como em antologias e revistas. Então acredito que uma grande dificuldade é a arrecadação de recursos para publicar. Mas, em verdade, para mim, o maior desafio tem sido posterior à publicação, com a distribuição do livro tanto para críticos quanto para leitores. Recebi uma cota de direitos autorais com muitos exemplares (50% dos 300 livros impressos), e, embora tenha tido muito apoio da editora em todo o processo de editoração, toda a distribuição dessa cota corre por minha conta. Sei que existem assessorias de comunicação que auxiliam nesse processo, mas os custos para isso também são um problema. Assim, minha dica seria buscar alternativas de financiamento e editoras que deem apoio nessa etapa pós-publicação.
R. N. – Terminamos. Foi um prazer imenso. Precisamos ressaltar que o espaço está aberto para quem desejar somar com nosso projeto, e você foi a primeira mulher. Uma honra para nós. Use esse último espaço para falar o que desejar, seja para seus leitores, seus parentes, seu papagaio. Espaço livre. Mais uma vez, agradecemos. Até a próxima!
M. F. – Primeiro gostaria de agradecer o espaço e dizer que fico grata por ser a primeira mulher, como quem tenta abrir caminhos. Espero que mais mulheres sejam encorajadas a buscar lugares de participação e destaque. Depois dizer que este é apenas um fragmento sobre minha última obra e minha poesia. Assim, aproveito para convidar para que me acompanhem nas redes sociais (@marinafaloni). E, por fim, falar para quem está começando: o caminho é árduo, mas gratificante. Não desistam!

Marina Faloni é é natural de Frutal-MG. Graduou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Desde a adolescência escreve poesia como refúgio para a compreensão das relações humanas e reconstrução da memória. Bicho Geográfico (TAUP, 2025) é seu livro de estreia. Constantemente publica em antologias e revistas.