por Mayk Oliveira,
poeta e colunista da Revista Navalhista
O vinagre antes do vinho: o porre de estar à deriva
Devo confessar que tem sido um porre essa coisa de ser jovem. Nos dias de hoje, com falta de emprego, tendo que buscar, cada vez mais cedo, o seu lugar ao sol em trabalhos precarizados, o que lhes resta é o viver entre os intervalos: do trabalho, das obrigações, da vida adulta e de toda a tecnologia que rouba o nosso tempo.
Não é de hoje que a juventude se vê encurralada entre exigências que não escolheu e expectativas que não consegue cumprir. Mas, ao contrário do que muitos pensam, não se trata de apatia. Trata-se de cansaço, de sobrecarga, de um mundo que cobra maturidade precoce e oferece pouco em troca. É nesse cenário que a arte quer voltar.
No livro Talvez efêmero de Luca Z. Manoel, (Mondru, 2024) o que se percebe é um reflexo da vontade de largar tudo isso ou de falar de tudo isso, contra tudo isso. Buscar refúgio em goles de uísque, na noite medonha, prestar atenção nos passos dos gatos vadios a ronronar a noite inteira, e tentar encontrar respostas na filosofia, nos pensadores que moldaram o conhecimento do Ocidente, especialmente os clássicos gregos. Há uma fagulha nos poemas. Fagulha de desejo de juventude, de mudança, de inquietação. Fagulha de experiência que quer ser narrada, comunicada. O eu lírico está fragmentado, contraditório, tentando se reconhecer no outro, e nesse gesto, deseja que tudo seja reescrito. É nesse reconhecimento doloroso que os poemas atuam como chave, como via para algo pleno. Tudo só encontra existência por meio dessa comunicação que tenta vencer o ruído da modernidade.
A impressão que se tem, ao percorrer os versos, é que o poeta defende com firmeza um belo passageiro. Esse belo que tem fim, e por ter fim, por ser efêmero, se espalha como pólen pela linguagem poética, atravessando as vias naturais da transformação. Não é fácil ser louco sob o sol. Em tempos sombrios, quando a arte se torna produto, a loucura e a não-autenticidade caminham lado a lado num percurso crítico da história. E desse choque emerge a exaltação da convulsão e da subversão como forças criadoras. Isso se evidencia na recusa ao classicismo literário entendido como imobilidade.

Os poemas de Manuel demonstram uma visão de seu tempo, com estética crítica que flerta com o existencialismo, envolta em uma linguagem sempre provocadora. Um dos momentos que sintetiza essa poética do desgaste e da transformação está no poema Ponunduva de cinzas que diz: “Busca o deserto/ Tudo são distâncias em mim/ E as uvas se fizeram vinagre/ Ainda no cacho”. A força deste fragmento reside na concisão e no símbolo. A imagem da ponunduva (pedra composta) reduzida a cinzas, que busca o deserto, já anuncia a renúncia ao florescer. Tudo é exílio interno, e até as promessas do doce (as uvas) se corrompem antes de existir. Aqui, a juventude é suspensão interrompida. O vinagre no cacho é uma forma de ruína precoce, de amadurecimento abortado. O autor transforma a linguagem em artifício de erosão, um espelho onde se vê a falência dos ciclos naturais. Essa erosão comunica-se diretamente com a crítica à precariedade da vida contemporânea e à impossibilidade de realização plena em um mundo que antecipa a frustração antes mesmo do florescer.
Logo depois, outro poema joga luz sobre a inversão e a instabilidade como forma de ver o mundo: A Fina Arte de Plantar Bananeira: “Pés nas nuvens, cabeça no chão/ Filosofar é ver o ponta-cabeça das coisas/ ou não”. Neste pequeno poema, o autor faz da acrobacia uma metáfora existencial. A imagem de plantar bananeira inverte o eixo tradicional do corpo e da razão evocando o devaneio, o deslocamento da lógica terrena indo ao encontro abrupto com a realidade. O gesto de filosofar, então, torna-se o movimento de torcer o olhar, ver por outro ângulo, ou talvez nem ver. A dúvida final (“ou não”) quebra a afirmação com humor e indeterminação. O poema aponta a ironia do pensamento que é se equilibrar na instabilidade, obviamente é nessa situação que todos requerem equilíbrio.
Há ainda outro momento curioso e tocante no livro. Uma parte que não está destacada com ênfase, mas que configura quase um conjunto de faixas poéticas, uma espécie de setlist literária. Nela, o autor cita, “seus apóstolos”: Bandeira, Vinícius de Moraes, Graciliano, Carlos de Andrade, Guimarães Rosa, Machado, Tolkien, João Cabral de Melo Neto. Essas figuras formam uma galeria que dá contorno à identidade estética e espiritual do autor. Não se trata de alguém que busca ser um profeta de carne, um escritor da palavra-pedra, um novo cristão dionisíaco. Tampouco um bruxo sarcástico ou espectro filosófico. O resultado dessa invocação é o desejo por um novo caminho, a formação de uma cosmologia que o próprio autor sente que deve ser trilhada e preservada. Estes poemas se estruturam como um fluxo de consciência sensorial e metafísico, onde o espelho, o símbolo clássico da identidade, se faz palco de um drama íntimo entre o eu que observa e o eu observado. A linguagem flutua entre o sagrado e o profano, entre o corpo e o espírito, manifestando uma espiritualidade carnal que se nega à assepsia do mundo contemporâneo. A figura do espelho, da janela, do lago, atua como mediadora entre mundos — o visível e o invisível, o vivido e o desejado. Há um erotismo cru que não busca choque; o corpo como lugar de memória e revelação busca a verdade. O sujeito lírico não teme expor sua carne, sua dúvida, sua vaidade e sua solidão. Ao contrário, ele as afirma como constitutivas de sua existência.

Luca Z Manoel – Nascido em Brasília, sou cajamarense por causa do segundo marido da minha tia mais velha. Já bebi mais, já fumei mais, já fui mais ao cinema e ao teatro, já fui pentecostal. Continuo fazendo letras e filosofia, mesmo depois de ter recebido o diploma e tenho um papel pintado dizendo que sou mestre. Hoje me exilo em outros paraísos artificiais, dentre os quais, mas não somente, o Reino Surdo das Palavras onde tento atocaiá-las e, à traição, rasgar-lhes a jugular com os dentes e beber-lhes toda a seiva. A propósito, sou poeta e publiquei o livro Talvez efêmero pela Editora Mondru.