por Soraya Viana,
professora, tradutora e colunista da Revista Navalhista
Preferências envolvem diversos fatores. Nosso histórico, o estado de espírito, a relação com o nosso entorno e tantas subjetividades contam para que algo nos afete. A partir delas, escolhemos um perfume favorito, somos cativados por determinada estética etc. Quando o assunto é gosto musical, costumo dizer que “algumas canções nos tocam e outras, não”. Dada a simbiose entre poesia e música, é compreensível que aconteça o mesmo ao lermos um poema.
Alguns fatos, porém, dão pouca margem à argumentação. A coletânea de poemas de Letícia Torres, Cravo (Selo doburro, 2021), chama a atenção de imediato. A capa é simultaneamente sóbria e vistosa. Sua padronagem, aparentando tecido, dá um ar vintage ao volume. A flor e o título, em delicado alto-relevo sobre o metalizado dourado, e o nome da autora em caracteres menores logo abaixo são um toque requintado.
Ao abrir aleatoriamente o livro pela primeira vez, constatei que o capricho tinha continuidade ali. O esmerado projeto gráfico de Daniel Minchoni é composto por fotografias em preto e branco de temas majoritariamente botânicos e zoológicos, que contribuem para realçar o efeito natural do livro.
Acima da imagem de uma pimenta, numa composição mesclando gravura e colagem, li:
a vida que perdi
está nas filas
procurando espelhos
(p.14)
A estrofe marcante tornou perceptível que, assim como as melhores fragrâncias, os versos da poeta potiguar recendem toda a sua potência nessa reunião de textos.
Cravo é uma daquelas leituras que nos pedem vagar. Afinal, o tempo é fundamental para o florescer de toda exuberância, até mesmo a lírica.
Além de prolongar a fruição, uma leitura lenta da obra ajuda a aparar o golpe das cenas evocadas pelos versos muitas vezes cortantes e de sonoridade rascante:
(…)
Vim do estrago
Fui atrás do que sobrou
Do desamor
Do que ficou no mato
Falei baixo para incomodar seu grito
Meu humor
Mais escasso
(p. 46)
As temáticas predominantes no livro são dores de vida provocadas por estranhamentos e lembranças ruins. Em grande parte dos poemas, o eu-lírico nos fala de desapontamentos e desconfortos. No entanto, esse relato não é feito com amargura, mas com o ímpeto da emancipação. Mostrada dessa maneira, fica explícita a naturalidade de sentimentos de revolta, mágoa e tristeza, tão combatidos, no mundo atual, pela febre de positividade a todo custo.
E há poemas que, por sua vez, ocupam-se com destreza da intricada descrição dos processos criativos.
O pensamento precisa doer para a mão conseguir falar
Perco a tampa da caneta querendo aparecer pintada
Escrevo apertando as folhas, me agarro nas palavras
(p. 31)

O fato de não serem nomeados adiciona uma camada extra à leitura. Ao evitar o direcionamento para essa ou aquela interpretação, ganham uma dimensão de surpresa revelada verso a verso.
Acordo com olhos apertados
Para não ver tanto mundo entrar
Cuido do lugar que não está ferido
E demoro os dedos, circulando o equívoco
(p. 72)
O invulgar talento da poeta para idear alegorias inusitadas estimula, ainda, voos imaginativos.
Por fim, o espaço em branco de cada página de Cravo assemelha-se a uma sala ampla e arejada. Ela convida a nos acomodarmos numa posição preferida, observar as imagens poéticas circundantes e então, inspirados pelas cores, texturas e aromas dos detalhes, criar nossas próprias conexões e significados. É lícito ainda apenas desfrutar do recanto peculiar erigido ali.
Da janela, cada leitor verá um panorama distinto. Eu, por exemplo, revisitei o antigo jardim da casa de meus avós. Lá, num presente com cheiro de passado, ouvi os insetos atraídos pelo colorido de espécies variadas, inclusive os cravos amarelos, os mesclados e os alaranjados ‒ os chamados “cravos de defunto”.
À cabeceira das mortas convicções
Vem a voz do passado sussurrar as palavras
Com as quais invento essa história
(p. 73)
A experiência de “teletransporte” proporcionada pela literatura é tão mágica quanto rara. A poética de Cravo e o transbordar de sensações que dela emana trazem em si o gérmen dessa potencialidade, tornando a obra ainda mais singular.
A identificação com autores de qualquer período desperta a alegria da afinidade. Descobrir uma poeta brasileira contemporânea de boa cepa como Letícia Torres ressoa ainda mais fundo. É um prazer viver nesta época em que ela cravou seus poemas num volume!
Que muitos outros leitores possam apreciar a refinada essência de Cravo.
Letícia Torres é também stylist e diretora de arte. Cravo é seu primeiro livro.

Letícia Torres é poeta. Cravo (Selo doburro, 2021) é seu primeiro livro.
Simplesmente um primoroso relato irretocavel de histórias da vida !
Escritora maravilhosa!