por Andreia Santos,
escritora e colunista na Revista Navalhista
Entre a carne e o verbo: a escrita da decomposição em Os Vermes do Mundo, de Giovani Miguez
Na literatura brasileira contemporânea, marcada por uma tensão constante entre o excesso e a ruptura, a obra: “Os Vermes do Mundo: prosa reunida” (Editora Folhas, 2025), de autoria de Giovani Miguez, é uma coletânea de textos curtos que circulam entre o conto filosófico, o fragmento narrativo e crônicas, por vezes, absurdas, constituindo um painel grotesco da escatológica condição humana. Miguez escreve como quem percorre os subterrâneos do tecido social, deslocando a linguagem para o limite do tolerável, não de forma ingênua ou como espetáculo, mas como gesto estético de escancarar o que estava, de algum motivo, oculto.
A começar pelo título, há um tecer poético: os “vermes” figuram como o apodrecido, e o “mundo”, não como mera alegoria — é o corpo, a cidade, o pensamento e a linguagem. O livro remete a um modo de percepção em que tudo é atravessado pela ideia da decomposição.
Há, no autor, uma sensibilidade que reconhece a ruína como estado (in)permanente das situações. Os textos não têm por função reunir e/ou resgatar “qualquer” ideia de beleza idealizada, mas provocar o leitor com imagens perturbadoras, que aguçam os sentidos. Em vez de distanciar-se da matéria bruta da existência, o autor opta por mergulhar nela, produzindo um tipo de beleza que não estamos acostumados, que é consciente de sua finitude.

Essa tensão relacionada ao discurso e matéria — entre a pretensão metafísica e a realidade corporal — é central na prosa/poética de Miguez. Ele parece querer dizer que toda palavra, por mais elevada que se pretenda, está sempre à beira da falência, da contaminação e da deglutição dos vermes. É uma percepção trágica da linguagem, mas também profundamente literária: escreve-se não para salvar o mundo, mas para observar atentamente seu lento, belo (em certo sentido) e inescapável fim.
Os Vermes do Mundo é uma obra que requer leitura atenta, mas profundamente recompensadora, pois convoca o leitor a confrontar-se com seus próprios limites, a reconhecer o desprezível como parte constitutiva do humano, e a compreender que, na literatura, mesmo o horror, o grotesco e o “feio” podem se transmudar em belo — não para nos confortar, mas para surtir um gesto de inquietação no leitor. Miguez escreve com o rigor de quem sabe que a arte não tem pretensões (às vezes) de ser um consolo, mas de estar em carne viva, pulsando sob a superfície de um mundo caótico.
É nessa pulsação entre carne e verbo que o livro se sustenta: como uma escrita que ao mesmo tempo “fede”, brilha, e incomoda — nesta justaposição improvável, toca o leitor. Os Vermes do Mundo é uma leitura inadiável. Por sua força estética e capacidade de transformar dor em verbo e denúncia em poesia. É um livro que nos obriga a olhar de frente para o que está à margem — e, ao fazê-lo, nos devolve a consciência de que o humano, mesmo ferido, não se aquieta, insiste e vive.

Giovani Miguez é poeta, escritor e servidor público. Especialista em Sociologia e Psicanálise, mestre e doutor em Ciência da Informação, com formação em Biblioterapia e mediação de leitura. Nascido em Volta Redonda (RJ), hoje reside no Rio de Janeiro. É autor de 18 livros, entre eles os recentes Um elogio à preguiça, Amor fati e Notações paridas (Uiclap, 2024). Na sua poesia, Miguez explora a expressão e reflexão existencial. Ora lírico, ora político, ora científico, mas sempre est(ético), o poeta segue sendo profundo em suas generalidades.
Uma visão bem amadurecida , real e profunda ! Não há como fugir dessa realidade embora seja tendência nossa ignorá- la ou simplesmente esperar que mude para algo mais agradável e visualmente belo ! Era assim que eu imaginava a Poesia antes de conhecer a obra de Giovane Miguez! Eu quero que a Poesia me toque a alma ! Isso é o mais importante !