Com a navalha: Gabriel Montilla. Os 3 poemas que seguem são do seu segundo livro “o sangue segue nos olhos” (2025), saiu pela editora Patuá.

as dores do mundo
no dia que descobri minha sina
era tarde demais.
meu braço esquerdo doía,
como se as veias estivessem entupidas de formigas.
meu peito apertou,
comprimindo as batidas do meu coração,
que, sem espaço,
foi obrigado a cessar toda aquela agonia,
mas antes – quase um segundo antes –
notei que só assim eu seria possível.
morrer é tornar-se eterno,
pois para sempre não seremos mais coisa alguma
e só deixando de ser
é que podemos pertencer ao tempo,
como num feixe de luz
numa longínqua memória.
entendi, finalmente entendi
porque estive vivo por tanto tempo,
sentindo as dores do mundo.
fui mais um condenado,
sem direito ao silêncio,
sem direito à solidão.
porque tudo sempre ardeu.
sensível demais.
não pude suportar a lamentação dos oprimidos.
(morri indignado)
não pude suportar a sobrecarga psíquica do amor.
(amei como quem declara uma guerra)
não pude suportar a vida.
a poesia rompeu as placas tectônicas
do meu peito
tudo o que pude fazer
foi sangrar o magma adormecido em mim.

perigo
saí por 5 minutos de casa.
vejo duas viaturas,
espreitando o perigo
que ronda o bairro.
se fôssemos verdadeiramente livres,
eu perguntaria agora:
para quem serve a polícia?
mas eu num sou doido de achar
que temos algum tipo de liberdade.
aproximadamente em 1490,
o homem branco traz consigo
a civilização europeia,
e impõem, na base da força,
todos os seus costumes, dogmas e culpas.
interrompem um modo de vida
que não era baseado na simples acumulação de riquezas.
naturalizam a fome dos povos,
[para além de criá-las].
barulho de tiro.
sirene ligada.
choro.
mais uma noite na ausência do silêncio,
as ruas dormem.
meu pecado foi nascer
sem tempo de ter medo,
numa cidade que ora chove um dilúvio,
ora o sol nos abraça de tão quente,
onde a política é coisa de família,
um privilégio da aristocracia rural.
se alguém fosse ouvir o que digo,
eu perguntaria agora:
o que faremos com os ricos?
mas eu não sei se quem me escuta
entende o que quero dizer.

quanto custa uma lágrima?
a avareza de poucos homens
retruca uma vida de servos,
escassos da terra
e do próprio tempo.
onde até a apatia, entalada no peito,
que queima como uma quimera,
as vísceras dentro de mim,
está subordinada a esse mundo mesquinho
que barulha, ao longo das eras,
a lamentação dos oprimidos
capaz de comprar o que não se vende,
de roubar os louros das façanhas homéricas,
como parasitas da espécie
entranharam suas vontades bárbaras:
quanto
custa
uma
lágrima?
sufocaram os céus,
violentaram as matas,
entupiram os mares,
corromperam o solo
se apropriaram até do que há no mais intrínseco do ser:
mercantilizaram meu âmago.
e esses dias, e essas noites,
de fúria, que dormem e acordam comigo,
não me deixam em paz.

Gabriel Montilla (Maceió/AL, 1996) é escritor, performer, professor e educador popular, graduando em História Licenciatura pela Universidade Federal de Alagoas, é também produtor cultural e militante do Coletivo de Cultura Periférica Guerrilha Poética e cofundador da produtora independente Simbiose Multimídia. Em seu primeiro livro, “as vacas estão fazendo protesto” (Editora M.inimalismos, 2023), aborda o cotidiano do trabalhador maceioense, entrelaçando a história cultural e política das Alagoas. Seu segundo livro já está em processo de publicação pela editora Patuá e se chamará “o sangue segue nos olhos”, onde o autor expõe as marcas deixadas pela exploração do trabalho e sua consequente desigualdade.