Entre moscas, píxeis e preces: a estética do fim do mundo em A Espiritualidade da Sobrevivência [resenha]
Entre moscas, píxeis e preces: a estética do fim do mundo em A Espiritualidade da Sobrevivência [resenha]

Entre moscas, píxeis e preces: a estética do fim do mundo em A Espiritualidade da Sobrevivência [resenha]

por Gustavo Freixeda,

escritor e colunista da Revista Navalhista

(perfil completo)

A Espiritualidade da Sobrevivência, de Carvalrôss, propõe uma escrita que se debruça sobre os escombros de um mundo em fratura. O título já antecipa o paradoxo central da obra: há qualquer espiritualidade onde só o que resta é sobreviver? O livro, publicado pela editora M.inimalismos, investiga as potências poéticas que nascem do esgotamento, do abismo e da persistência. É a sobrevivência estética e ética escalavrada nas ruínas que não param de aumentar, pura declamação com dedo em riste.

Quando o termo “espiritualidade” surge aqui, ele está longe da forma pacífica e zen, tão batida. O que ganha as luzes da ribalta é uma espiritualidade suja, urbana, embutida nas vísceras de uma existência precária. Logo nos primeiros poemas, percebe-se uma escrita em que a forma é tão quebrada quanto o conteúdo que carrega, sendo a própria instância da ruptura. A construção abraça o desconforto e exige um esforço para decifrar os traços deixados pelos sujeitos em queda. Versos como “demônios musicais são as moscas volantes” tensionam o lírico e o grotesco, ampliando o campo semântico e alcançando o desagradável. 

Mais próxima da colagem do que da construção linear, a linguagem mistura o erudito e o pop, o litúrgico e o grotesco, fazendo com que a obra oscile entre o hermético e o brutalmente direto — em alguns momentos, a ponto de se perder um pouco em seus próprios labirintos. Mas, ainda que o neologismo constante e a sintaxe rarefeita possam afastar esse ou aquele leitor, são escolhas corajosas essenciais para a mensagem Carvalrôss. Não se trata de comunicar verdades prontas. Delas, já estamos saturados. Trata-se de arranhar o silêncio, fazer dele uma tarefa árdua.

No núcleo do livro, a série de poemas que inclui Peixe investido contra as redes, Ad Insta-gr-amável e Pixtoresco destaca-se pela crítica contundente ao universo digital e às formas de espiritualidade capturadas por algoritmos. O jogo entre redes (sociais, de pesca, de controle) e peixes (figura recorrente do sagrado, mas também da vulnerabilidade) constrói uma alegoria bastante válida sobre o esvaziamento do sagrado em tempos de exposição e consumo. Há algo de trágico e patético nos “peixes que seguem cobiçando píxeis”, como se a fé contemporânea estivesse mesmo ancorada em promessas de curtidas, visibilidade e pertencimento. 

Perpassa todo o livro um cansaço que não é apatia, mas sim vigilância, uma atenção às rachaduras do mundo. E mesmo quando se aproxima do delírio, como na série Poemas do Abismo, mantém acesa uma espécie de escuta aguda do colapso. São textos mais introspectivos, onde o “eu” se vê às voltas com sua própria falência simbólica. Ecos de confissão, memória, culpa, uma espécie de pós-catástrofe subjetiva: “não sou livre… mas mesmo assim mantive meus próprios reféns e prisioneiros.”

A parte derradeira da obra desloca a atenção para uma poesia social de denúncia. O livro se torna mais direto e tocante, sem abandonar a complexidade formal, ao falar de desemprego, violência policial e desastres ambientais. Na reta final, a espiritualidade deixa de ser metáfora e mão no bolso para se tornar o dedo em riste. Diante da fome e da humilhação, parece que resta apenas a fé no ato de continuar. 

A Espiritualidade da Sobrevivência é, acima de tudo, um livro sobre escombros: escombros da linguagem, da fé, da política, do desejo, do trabalho e do amor. Mas, ao contrário de outras obras que se interessam pelas ruínas como cenário, ele se interessa pelas ruínas como matéria viva. É daí que vem sua força. E também seu incômodo.

Talvez seja, paradoxalmente, um livro de esperança. Não a esperança higienizada das frases de efeito, mas aquela que se arrasta, suada, exausta, e mesmo assim continua dizendo: “eis-me aqui”.


O pai de Carvalrôss contava trinta e oito anos quando nasceu o poeta, à vida vindo em Minas Gerais num mundo lugaroso de interior o qual se enraizou: Quebra’Anzol. Depois conheceu e viveu outros lugares, igrejas, cidades, pólos industriais, as escolas de letras e psicologia, muito tempo olhando e ouvindo, muito tempo dilatado em trabalhos, os dias engrenados ao torque da máquina mercante.

Um comentário

  1. Glória Rosa

    Apreciei a resenha. Me trouxe mais compreensão da mensagem literária proposta por Carvalrôss. Felicito o escritor e o colunista; ambos brilharam. Estou construindo o entendimento e me surpreendo com as descobertas. Sem dúvidas, Gustavo contribui.

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