por Gustavo Freixeda,
escritor e colunista da Revista Navalhista
Livros como esse de Tamara Isaac querem, acima de tudo, existir. Existir contra todas as tentativas de silenciamento, esquecimento e apagamento que a vida, a história e o mundo impõem a certas existências. No cerne da coisa, onde há um gesto de escrita que tensiona o verbo até que ele sangre, tudo existe com força redobrada e o livro se transforma numa arqueologia emocional, política e histórica, escavada por uma autora que se desloca entre geografias, línguas, identidades e traumas. Não quero ser outra busca, como diz um verso marcante da obra, começar o mundo de novo, mas não sem antes passar pelas ruínas do anterior e reconhecer cada pedra como cicatriz.
É possível encarar esses versos como uma autobiografia poética fragmentada. Mas é também necessário lê-los como um documento político, um exercício de memória coletiva, uma tentativa de descolonizar a própria linguagem e o próprio corpo. Nascida no Haiti, formada em Direito, imigrante, mulher preta, Isaac escreve na complexa encruzilhada da migração forçada, da identidade racializada, da violência de gênero e da diáspora linguística. E ela não suaviza esse nó. Na verdade, faz dele poesia.
Há, de saída, como nos aponta o texto da contracapa, um fato que não pode ser ignorado: Tamara escreveu esse livro menos de dois anos após começar a aprender português. Ou seja, a escolha de não ser 100% em português, e de manter algumas vozes e documentos em seus idiomas originais, é mais do que uma afirmação estética. É política. A vida de sua autora não cabe em um único idioma e não se fecha no intimismo dos traumas. Na autenticidade de sua vivência, encontra neles, e nos idiomas que os embalaram, os rastros de uma história coletiva.
O livro se divide em quatro seções — Entre fronteiras, Feridas insones, Revoluções e Não quero ser outra —, que funcionam como estações de uma travessia emocional e histórica. Logo no início, em Darién, Tamara evoca a famosa selva que separa as Américas do Norte e do Sul, conhecida como corredor migratório e cemitério. O poema, dividido em três blocos, narra esse percurso com imagens de corpos esvaziados, rios apagando nomes e passagens que não prometem chegada. “Basta vestir a bandeira emprestada/ que prefere abrigar o vento/ para não mirar a estrangeira”, escreve. É uma declaração sobre invisibilidade forçada e sobre a tentativa de reaparição.

A seção Feridas insones é talvez a mais dilacerante do livro. “Quem inventou a ferida imposta/ que cava trincheiras até os talões?”, pergunta a poeta. E o fato de a resposta para a questão ser tão clara quanto difusa tem um impacto enorme. Em Ser filha, não me tornar mãe e 4, impasse Duverger, a poeta escava os escombros da casa e da infância para denunciar uma violência estrutural e também afetiva. A família, aqui, aparece não como um lugar de acolhimento, mas como um espaço de silêncio e opressão. Isaac não arreda o pé na hora de desmantelar mitos, nem mesmo o da “mãe” como figura sagrada.
Nesse ponto, somos lembrados de que é possível que as palavras curem, mas não sem antes ferirem de novo. A linguagem desses poemas formam armadilhas, feito vultos que não cessam de aparecer. Ao escolher manter palavras em crioulo haitiano, espanhol e português, então, ela recusa a negação desses vultos e também da homogeneização. Faz da multiplicidade um território de resistência. E nos convida a ocupar esse espaço com desconforto, com vultos, com tudo, como quem atravessa a fronteira sem saber se será bem-vinda.
A terceira seção, Revoluções, marca uma virada. Não há aqui uma superação otimista. Mas há uma demonstração de força que até aqui parecia abalada. “Me arrancarei,/ pétala por pétala,/ a cor, a pele e aquela resposta/ que me havia obsequiado minha mãe”, escreve. A imagem do corpo que se reconstrói a partir de si, e não da herança violenta, é central. O poema Sozinha, por sua vez, com todas as suas exclamações, é um dos mais crus e inevitáveis do livro. “Não me deixem deixar que a resignação/ pese mais do que a raiva!”. A raiva justificada, muito embora seja excruciante, incita o movimento e não a destruição.
E então, chega-se à última seção, Não quero ser outra, que sintetiza todo o percurso. “Cada dia acordo num poema./ Às vezes conjugo vozes./ Amiúde apenas recolho palavras.” Não há promessa de integridade, de cura, de redenção. Mas há um desejo explícito de não renunciar a si, mesmo que os outros digam o contrário. “Dizem que sou deslinguada,/ que não tenho pai,/ que minha mãe me roubou a terra.” O texto responde, com firmeza, “Ainda quero./ Quero tormentas, presentear águas.”
No poema que dá nome ao livro, a autora afirma sua identidade em meio ao que tentaram roubar. A terra, o nome, o corpo. Querer ser outra seria negar a dor, o percurso, as múltiplas camadas que fazem de si quem é. E, isso, Isaac não aceita.
Não quero ser outra é a escara viva de alguém que, mesmo carregando as marcas de tudo o que lhe foi tirado, ainda acredita na potência do verbo, um verbo que, quando bem usado, é capaz de reinventar o mundo. Mesmo que ele comece numa página vazia.
Em sua singeleza, Tamara Isaac encontra um ato extremamente radical, o reescrever a si mesma, verso por verso, sem pedir desculpas.

Tamara Isaac é uma advogada, escritora e tradutora haitiana residente no Brasil. Seus poemas foram publicados em antologias costarriquenhas e brasileiras, como Nueva Poesía Costarricense (2020), La Sangre de las Décadas (2021), Bitácora Abierta 2: Entre el Abrazo y la Nostalgia (2024) e O Amor é Um Grito (2024).
Poeta multilíngue, trabalhadora cultural e especialista em justiça da linguagem, Tamara também coorganizou encontros culturais (Museo del Jade, Costa Rica, 2019) e workshops sobre escrita criativa e inteligência artificial (Centro Cultural de España, Costa Rica, 2023). Ela é reconhecida por seu trabalho em justiça da linguagem e inclusão, promovendo espaços multilíngues e acessíveis que abordam temas como política negra, justiça migratória, racial e de gênero.