Rebeca já tinha visto tudo nos filmes. Ela acreditava ser possível escapar de qualquer prisão. Como em um Sonho de liberdade: basta entender um pouco de geologia, comprar um pôster da Rita Hayworth, atravessar um esgoto, cair em um lago de merda, sair coberto de dignidade e viver em Zihuatanejo. Em última instância, restaria ser como em Papillon, se alimentar bem de insetos e se lançar ao mar sob uma boia nada confiável. Ela tinha lido nos jornais: sim, um ou outro presidiário já havia cavado um túnel com uma colher. Quanta força de raiva armazenada para escapar de uma cela cheia de situações ferinas. Ela sabia, era capaz de cavar com o talher da sobremesa, se isso adiantasse alguma coisa, mas não servia, a sua sala não tinha paredes grossas ou saída para o mar, tão pouco para o jardim, sequer era uma sala, era uma baia, em frente a uma divisória bege, essa cor tão apavorante quanto o ato de fumar em uma festinha de criança. Bem que as mães da repartição podiam reclamar da baia, assim como tinham reclamado do dia que ela acendera um cigarro na frente da Elsa e antes do Parabéns. Tinha demorado horrores, ela nem queria um bolo azul e branco, apenas ir embora, assistir algum filme esquisito no Cine Brasília. Assim refletia a moça, adiantada na tarefa que almejava concluir logo, outra licitação que fracassaria por falta de verbas.
Elegante por fora e desgrenhada no íntimo, a senhora, bonita e quarentona, divorciada, de vida irresoluta, não aguentava mais sentir-se presa a uma profissão. Ela queria trocar de cela, ou melhor, de Setor, mas a especialidade de seu cargo não permitia; restava pensar na fuga. Era pior que Alcatraz. Nem Clint Eastwood conseguiria burlar aquela repressão invisível. Ele tentaria passar em outro concurso, mas sofreria pelo dilema de uma questão errada anula uma certa. Ele tentaria chantagem, sexo de calcinha vermelha, tiro de canhão, duelo no deserto… não adiantaria. Tal Rebeca, Clint não conseguiria se livrar das despesas médicas do pai e da dívida contraída com a viagem de sobrevivência a Salvador, aquela com passagem aérea e acomodação mais caras que se hospedar em Mônaco.
Rebeca estava apenada ao tédio, ao comodismo bem pago, a definhar pelo desgosto, passar do floral ao Rivotril. Não era o seu desejo. Ela planejava evaporar, se esvair, simplesmente escapar feito a fumaça do seu carro. Pediu uma condicional ao chefe, não conseguiu. Não havia substituto disponível. Revoltou-se: saiu sem bater o ponto, largou o Sedan no estacionamento, voltaria para casa a pé. 2 horas de caminhada, tempo suficiente para entender o ângulo de um pedestre. Lá estava a Capital Federal, arborizada artificialmente para povoar a rua com pássaros, pelo menos a livre presença deles, já que o humano não iria a lugar algum sem um veículo a motor. Na esplanada, muitos transeuntes correndo pelo gramado verde em direção ao descanso. No estacionamento do Conjunto Nacional, competidores de vagas gratuitas. Nas 900 Norte, poucos andantes, tantos quanto postes acesos, e alguns esfarrapados com cachorros que mordem na 713. Foi ali que viu sua porta de saída: um colchão fino por fora de um Studio de Pilates, em cima, uma pessoa caída soterrada por um cobertor florido azul feito de microfibra, não se distinguia se era homem ou mulher, jovem ou idoso, apenas os pés sujos de piche e desaquecidos por fora da coberta. Chegou a sua casa, tinha observado tanto que finalizou o percurso com uma hora a mais de caminhada. Na esquina dos pés de piche, havia descoberto a chave para sair do cárcere, o objeto prateado se forjara numa pergunta: o que é um sentimento de prisão perto das grades de segurança máxima da pobreza, do teto sem paredes emprestado a contragosto?
Naquela noite, não viu filmes sobre prisões, cansou de procurar fugas reais ou fictícias. Não reprisou A espera de um milagre. Finalmente desistiu do negro mágico e das grades que ele podia, mas não tinha escancarado. Pela manhã, não precisou chegar a baia com vista bege para girar a chave; no ônibus, decidiu ficar encarcerada nos processos kafkianos, manter seu vínculo com a imutabilidade dos sonhos mortos, a rédea curta da frequência, a aposentadoria confortável e sem filhos, o nome limpo num país de credores sujos. A fuga daquele dia não levara a liberdade imaginada: Rebeca havia feito um saidão, tinha escapado por uma tarde da sua gaiola cor de contracheque, tinha se decepcionado, não chegara a Zihuatanejo, se perdera na desilusão, numa rua sem saída, na indigência brasiliense.

Angélica Conceição — Tenho 41 anos e um longo período de escrita escondida na minha cabeça. Cresci em cidades não planejadas, pedaços periféricos de Brasília que bestializam seres humanos. Minha história na literatura se relaciona com o desejo de revelar as histórias desse povo bestializado injustamente, seja por não ser besta coisa nenhuma ou por ter se tornado besta porque foi condicionado a acreditar em lorotas. Iniciei minha carreira literária em 2024. Escrevi um romance e contos avulsos que estão circulando por aí em busca de publicação e visibilidade. Sou versátil, tenho um Substack em tríplice aliança — literatura, cinema e a vida de uma escritora bibliotecária.