por Mayk Oliveira,
poeta e colunista da Revista Navalhista
Cartas ao remetente: As letras que voltaram em forma de memória
Há quem veja na vida apenas o correr dos dias, e há quem consiga perceber a beleza escondida nas coisas simples. “As letras que deixei partir” (M.inimalismos, 2025), livro da escritora Andreia Santos, pertence a esse segundo olhar: o que se demora nos detalhes, encontra encanto nos gestos cotidianos e transforma pequenas cenas em memórias que falam de afeto, perda e recomeço.
Motivada pela partida do pai, a autora escreve memórias como forma de homenageá-lo e, ao mesmo tempo, encarar o processo de luto já na fase de aceitação, momento em que a perda é reconhecida como parte da vida, permitindo que a dor conviva com a serenidade e que as lembranças ganhem lugar de afeto. A elaboração dessas memórias, nesse contexto, funciona como ferramenta valiosa para sustentar a aceitação, transformando ausência e dor em narrativa superação.
Ao observar o luto presente na obra é perceptível que, além de lidar com esse sentimento, a autora escolhe a crônica, com forte tendência àquele tipo de conversa boa na mesa do café, seja entre familiares, pessoas próximas ou na típica troca afetuosa com amigos. Mário de Andrade dizia que “os livros são como cartas para amigos”, e essa imagem se encaixa com perfeição na obra. Os textos carregam a intimidade de uma correspondência pessoal, endereçada a quem detém a chave de leitura que são os amigos próximos. Essa atmosfera se intensifica em duas histórias curtas em que a carta é o núcleo da narrativa: “As letras que não deixei partir” e “Não te percas, menina!”, nos quais a escrita conecta afetos e memórias.
As memórias narradas percorrem temas de forte carga emocional: perdas irreparáveis, como a ausência do pai; amores que se desencontram (e não se encontram mais); lembranças de uma infância livre e divertida. A autora habilmente constrói um espaço para histórias engraçadas (“Uma Cinderela moderna”, “Perdeu a prima, mas não perdeu a piada”, e na hilariante, “Pode alguém ganha uma voz?” que poderia muito bem se chamar “o Martelo Mágico”. Andreia Santos segue abraçando o fantástico, que é caso da insólita “Achou-se no mar”. E ainda há tempo para narrativas mais duras, “Conversas perdidas no botequim” e “Perdi todas as chances de ser princesa, virei bruxa” que lembram a vida como ela é, sem adornos nem concessões. O resultado é um conjunto de missivas que acolhe, provoca como toda boa carta de amigos que chega para nos fazer pensar, sentir e lembrar.

Uma nota impossível de não registrar é que no livro “As letras que deixei partir”, Andrea Santos enreda seus personagens em um ponto fictício que, por vezes, se concentra em uma figura única: uma mulher que busca entender suas escolhas e os caminhos trilhados. Essa personagem é dotada de uma memória infalível para os fatos antigos, preservando afetos, afagos, sonhos, decepções, traumas e tramas. Antes de tudo, é uma mulher de gosto requintado. Muitas vezes, Andrea lhe confere repetições de frases e colocações típicas de alguém com um comportamento muito próprio, como na crônica O último outono: “A comunicação não fluía, nossas roupas não combinavam, aliás, não nos harmonizavam desde o início”. Podemos encontrar ainda um lirismo elegante em passagens que captam o sensível, ainda na mesma crônica, ao tratar do outono: “Outono não é uma estação, é um entrelugar entre o frio e o quente, aquele que vivemos em filmes e séries, ora retratado como romântico, ora como um tempo de partida”. Ou ainda em frases de grande impacto poético, como: “Os silêncios eram templos gigantes”. Nas linhas da narrativa breve de “Salva pelas pilhas”, por exemplo, a autora escreve: “Aquela foi a primeira perda do objeto, como lembro, e virou memória afetiva, tão viva em minha mente, que anos se passaram e ainda lembro. Depois de tantas perdas, prometi a mim mesma que nunca mais desenharia de perda nenhuma”. Nesse trecho, a origem da memória e o próprio sentido de perder permeiam a narrativa e moldam a personagem, que transforma cada lembrança em parte essencial de seu processo de entendimento e ressignificação.
A perda, seja concreta ou simbólica, perpassa a literatura como um fio invisível que costura narrativas e personagens. As crônicas do livro, essa narrativa não se limita à morte ou ao adeus definitivo. Podendo ser a ausência que se instala no silêncio, a ruptura de um vínculo ou a erosão lenta de um afeto. A psicanálise nos lembra que a perda carrega no inconsciente memórias de outras ausências. O leitor, assim como o personagem, percorre um trabalho de luto: reelabora a falta, enfrenta o vazio e, no espaço entre as palavras, encontra os restos e vestígios do que foi.
Para finalizar, é importante que o leitor saiba: talvez não devêssemos conjugar o verbo perder. Perder não deveria ser verbo, mas ainda assim, Andréa Santos o conjuga. Mostra a verdade, expõe o sentimento e revela por que, às vezes, é preciso conjugá-lo: como forma de seguir em frente, reinventar-se, contar histórias, reunir afetos e dar mais importância e valor a tudo o que se aprende. É a lição de quem decide reler e ressignificar a própria vida, suas memórias e sua jornada e nesse processo, enviando-nos cartas, cujo os textos nos convida a sentar e compartilhar aquele café que, como suas páginas, aquece, aproxima e deixa um sabor na memória.

Andreia Santos é graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), especialista em Literatura e Estudos Culturais (UEPB), mestre e doutora em Literatura e Interculturalidade (PPGLI/UEPB). Professora universitária. Autora de contos, crônicas em antologias e coletâneas. Autora do livro de contos: As letras que deixei partir (Editora M.inimalismos, 2025) e dos livros de poesia, ambos no prelo, Da Pureza do Sensível (Editora Caminhos Literários) e Que venham as histórias: as palavras eu as escolho (Editora Xará).