por Mayk Oliveira,
poeta e colunista da Revista Navalhista
Deixando a gira girar: ouvidos que escutam não envelhecem
Em algumas culturas da África Ocidental, os anciãos, ao se reunirem, aguardavam longos minutos de silêncio após a última fala, como forma de respeito e assimilação. Sabiam que falar cedo demais era desonrar a palavra recebida pois cada fala carrega um tempo, um espírito, uma escuta. Esse gesto ancestral de atenção plena se faz presente na plaquete de Giovani Miguez, que escreveu após ouvir demoradamente, com reverência.
A plaquete, “Aleluia, Mateus, Infinito” (Edição do autor, 2025), do poeta Giovani Miguez, é uma série de cartas-poemas escritas com veneração e adoração a Mateus Aleluia, revisitando a trajetória do cantor por meio dos álbuns em que ele participou, seja com o grupo Os Tincoãs, seja em sua carreira solo. Para o autor a ressonância entre poesia e música não é mera ilustração, mas uma celebrada invocação compartilhada.
Os poemas do livro acompanham cronologicamente os álbuns que marcaram essa caminhada espiritual e estética. As cartas-poemas começam a ser enviadas a partir do álbum “Os Tincoãs” (1961), em que Miguez reconhece as raízes ainda tímidas do trio vocal, com toques de bolero e rádio, mas onde já se vislumbrava um canto que marcaria o tempo com o sopro do eterno sagrado. O poeta escreve: “uma voz se encosta no corpo / feito calor de vela acesa / ainda não diz o nome dos deuses / mas já respira como eles. / nasce entre rádios e saudades / o canto que irá dividir o tempo / em antes e depois do silêncio.”
Segue-se o álbum “O Africanto dos Tincoãs” (1975), exaltado como “o Cântico dos Cânticos do Candomblé”, uma espécie de oferenda que transformou o disco em terreiro, com Aleluia no centro da roda, tornando-se fundação espiritual. Aqui, o Brasil é o som do feitiço como se lê no poema: “a palavra acende o chão / o ritmo veste branco / a harmonia não consola / ela provoca / ela convoca / o orixá escuta / o tempo se curva / e o Brasil, por um instante, / reza em sua própria língua.”
Em seguida, para o segundo disco “Os Tincoãs” (1977) surge como ápice a estética do Afrobarroco, onde Aleluia é descrito como “arranjador do invisível”. Para Miguez as faixas musicais são como arquiteturas sagradas, elevando a música ao patamar de escultura da fé negra. O poeta, deixa a gira girar desse jeito: “o canto ergue colunas / com notas e pausas / o altar tem timbre / o chão é harmonia / não se escuta / se sobe / em espiral / até o silêncio.”

Há um destaque especial para “Os Tincoãs em Bissau” (gravado em 1982, lançado apenas em 2017), álbum em que o grupo retorna simbolicamente à África. O poeta vê nesse disco um reencontro com a ancestralidade, onde “a África não te espera / ela te reconhece / no passo / no timbre / no nome / ali, entre palmeiras e tambores / você reencontra / o que nunca perdeu.”
Na fase solo de Mateus, a poesia mergulha na dimensão filosófica e sensorial do sagrado. Em “Cinco Sentidos” (2010), Giovani celebra o álbum em tom mais meditativo quando diz: “o silêncio aprende a cantar / pelos poros / pela pele / pelo cheiro / é o som da paciência / do que não se explica / mas se oferece / feito perfume no ar.”
“Fogueira Doce” (2017) o álbum solo seguinte, é retratado como calor brando, onde as canções esmiuçam que a lembrança é um tipo de brasa que arde suaveao escrever: “a canção não tem pressa / mas queima / como quem olha para o passado / com ternura / e vê que, apesar de tudo / a vida ainda dança.”
A culminância poética se dá com “Olorum” (2021), álbum que destaque, tanto em força lírica quanto em profundidade espiritual. Aqui, Aleluia já não é tratado mais como um cantor, mas sim, como o orixá preferido do autor. Agora, ele é reverenciado como um sacerdote. Olorum é entendido como oração, vibração, templo invisível. Miguez escreve: “você não nos explica Deus. Você nos convida a sentir a vibração que Ele deixa no ar”, e conclui com versos de reverência: “nenhum nome dá conta / mas ainda assim / você canta / e no meio da nota.”
Com esse encadeamento sensível e respeitoso, a plaquete se encerra com um epílogo que transcende o tributo e transforma-se em liturgia da escuta. Giovani Miguez constrói um livro-altar portátil. Onde som, palavra e memória se misturam em devoção. É uma carta de amor, a um cantor sagrado que fez da voz um modo de cuidado com o mundo.

Giovani Miguez é poeta, escritor e servidor público. Especialista em Sociologia e Psicanálise, mestre e doutor em Ciência da Informação, com formação em Biblioterapia e mediação de leitura. Nascido em Volta Redonda (RJ), hoje reside no Rio de Janeiro. É autor de 18 livros, entre eles os recentes Um elogio à preguiça, Amor fati e Notações paridas (Uiclap, 2024). Na sua poesia, Miguez explora a expressão e reflexão existencial. Ora lírico, ora político, ora científico, mas sempre est(ético), o poeta segue sendo profundo em suas generalidades.