por Gustavo Freixeda,
escritor e colunista da Revista Navalhista
Há um verso na plaquete Metapoéticas: remendos e atos poéticos #2, de Giovani Miguez, que funciona como uma espécie de dobradiça entre o que ela propõe e o que rejeita: “não sei o que escrever, mas preciso.” A frase reverbera como um impulso inaugural, a partir do qual o autor traça a trajetória que percorre estas páginas, em um caminho de esvaziamento das exigências formais, temáticas e narrativas que comumente envolvem a escrita poética. Este conjunto de textos bate pernas sobre esse processo paradoxal, estudando a linguagem enquanto tenta convertê-la em matéria emocional.
Acertadamente, Miguez recusa qualquer autoridade. A perfeição não caberia em um território tão incerto. No lugar de obras perfeitas e calculadas, nos apresenta o texto em sua condição precária: poemas que não buscam intocabilidade, mas se constroem por sobreposição, frases que parecem ter sido deixadas à margem da ideia de estilo, repetições que se tornam marcas de uma recusa deliberada à performance literária tradicional. As redundâncias, como o autor afirma, “não são manobras estratégicas, são imposições poéticas.” A escolha por manter esse excesso é uma forma de desobediência estética e também um apego ao que ele chama de “espólio poético”, definido por um acúmulo de fragmentos, escaninhos e manuscritos, lidos ou não, que constituem o que resta da escrita no mundo. Forma poemas ao mesmo tempo que tenta escapar deles.
O poema, é verdade, não interessa. O que interessa é o gesto da escrita como experiência. O que realmente vale é a investida contra a expectativa de forma acabada: “desenformado, mas profundamente informado”, escreve, refletindo sobre um processo que se desvia da elaboração para se aproximar da escavação. Escavar o próprio ato de escrever acaba virando um modo de compreender tanto o que se faz quanto a razão de continuar fazendo, e ambas investigações têm o mesmo peso. O “metapoético” do título é o nome de uma inquietação recorrente que alimenta um desejo de explicitar os mecanismos da criação sem a ambição de esgotá-los.

O livro está repleto de pequenas operações que revelam um autor em constante negociação com o fazer poético. O texto a forma do poema ilustra bem esse vai-e-volta interno, cheio de contradições, quando a voz enumera o que dizem que ele deve ou não deve fazer e termina por declarar sua opção pela forma curta, por ser uma estrada mais ampla para que o poema vague livremente. A oposição entre “poesia” e “poema” também ganha o foco aqui e ali: a poesia sendo a força vital, anterior à linguagem; o poema sendo um gesto de tentativa. Essa distinção, repetida e retrabalhada ao longo do livro, marca a adesão a uma poética da falha, da não captura, do quase.
Há um tom devocional em tudo isso, que se afasta do endeusamento do poeta e da autoironia programada. Miguez não se coloca como grande intérprete do mundo e nem como um grande cronista da sensibilidade. Escrever é o que lhe resta, portanto recolhe o que foi deixado de lado, recusando a metalinguagem como método e a transformando em abrigo. Não há um direcionamento estético, há apenas a necessidade de continuar, de se debruçar para escrever sobre o escrever. Em momentos como “a escrita é minha ‘comigo ninguém pode’”, ressoa não a virilidade, mas a declaração de fragilidade. A escrita protege, mas também expõe, e isso confere à frase reticências que não estão lá: “comigo ninguém pode…” o quê? Se relacionar, talvez? Ver além? A verdadeira poesia, que não se importa com o poema, está no que falta, nas reticências. Quando o poema se faz ausente, a poesia se faz presente.
O texto que abre a plaquete, um prefácio do próprio autor, fala sobre como tudo aquilo é um “diário de bordo”. E a escolha do termo importa. O que está sendo registrado é o movimento de quem escreve tentando não afundar. Registrar para continuar existindo nas reticências, remendar para seguir em frente.
O que Metapoéticas propõe não é a consagração de uma voz lírica, mas a documentação de uma escrita que, mesmo diante da exaustão e da desilusão, ainda insiste. Escrever, neste caso, não é desfecho nem revelação, é uma forma de cuidar. De fincar o hoje nos abrigos das palavras.
Enquanto houver quem escreva, mesmo de forma “espelhada, deformada, fragmentada”, a palavra continuará sendo uma manifestação de vida e de permanência: “até que um dia a poesia pare de chegar, e eu, enfim, possa me deitar e descansar.”
O descanso há de chegar, mas, até lá, para Giovani Miguez e tantas outras almas penadas, que a escrita siga sendo uma forma de sentir o que ainda não tem, e talvez nunca tenha, forma.

Giovani Miguez é poeta, escritor e servidor público. Especialista em Sociologia e Psicanálise, mestre e doutor em Ciência da Informação, com formação em Biblioterapia e mediação de leitura. Nascido em Volta Redonda (RJ), hoje reside no Rio de Janeiro. É autor de 18 livros, entre eles os recentes Um elogio à preguiça, Amor fati e Notações paridas (Uiclap, 2024). Na sua poesia, Miguez explora a expressão e reflexão existencial. Ora lírico, ora político, ora científico, mas sempre est(ético), o poeta segue sendo profundo em suas generalidades.
Quando alguém capta minha fragilidade, tenho certeza que estou funcionando como poeta e que a poesia realmente me atravessou. Obrigado pela senível e sincera resenha!