NAVALHAR É PRECISO – ALOISIO ROMANELLI [entrevista]
NAVALHAR É PRECISO – ALOISIO ROMANELLI [entrevista]

NAVALHAR É PRECISO – ALOISIO ROMANELLI [entrevista]

REVISTA NAVALHISTA – Relances de mar e montanha (Editora Mondru, 2024) é sua estreia na literatura. Como podemos supor, o próprio título nos traz de onde saem os poemas. Pensando na estrutura, o livro é dividido em três partes: “A vista das montanhas”, “Rumo aos corais” e “Retorno”. De relance, a sensação que fica é que há ali uma viagem, um percurso. Há algo de certo em minha impressão ou a viagem foi meu próprio comentário, e quem for ler não precisa se ater à estrutura?

ALOISIO ROMANELLI –  A sua impressão é mais do que correta. A estrutura do meu livro é um de seus pontos fundamentais, de modo que ele não constitui apenas uma coletânea de poemas que possuem algo em comum. Relances de mar e montanha se constitui enquanto um projeto poético. Em sua estrutura ele inicia com uma espécie de “poema epígrafe”, bastante musical, o único que, intencionalmente, não possui título, visto que sumariza a essência do livro. Em seguida temos 3 seções, que compõem uma viagem geográfica e poética:

1) A vista das montanhas: aqui se enfatiza a mineiridade e seus elementos simbólicos; nessa parte temos um eu-lírico mais denso, muito atravessado pelo espaço das Minas Gerais, trabalhando os “relances poéticos” como um escavado, que se aprofunda na superfície das paisagens. É o ponto de partida da viagem.

2) Rumo aos Corais: nessa seção o eu-lírico se defronta com o mar e seus encantamentos. Dessa forma, a dicção poética aqui se torna mais leve e fluida, com muitos poemas que contemplam as paisagens encontradas no percurso, mas sempre com algum aprofundamento. É o ponto de chegada da viagem, o desejo de leveza do eu-lírico, à maneira de Alberto Caeiro.

 3) Retorno: temos nessa última seção a ideia de retorno do eu-lírico para suas origens já traçadas na primeira parte do livro. É um retorno físico e simbólico, no qual o eu-lírico se volta para si, retornando às suas angústias e desapontamentos. Aqui a dicção é mais áspera e melancólica, com algum um fio de expectativa no futuro. É o ponto final da viagem.

R. N. – Aproveitando que falou desse fazer poético “à maneira de Alberto Caeiro”, além dos mineiros, fale sobre poetas que te fazem poeta. As tão esperadas referências, pelos nossos leitores.

A. R. – Entre meus poetas “de cabeceira” , além de Adélia e Drummond, já citados, eu incluiria: Ferreira Gullar, Fernando Pessoa, Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto, Paulo Leminski, Ana Cristina César e os contemporâneos Eucanaã Ferraz e Ana Martins Marques

R. N. – Quando lemos uma cena do cotidiano traduzida em versos por Adélia Prado, quando lemos as lamentações drummondianas por sua Itabira perdida, não é difícil chegarmos à conclusão de que o poeta mineiro sente seu lugar de forma diferente. O poeta mineiro parece atravessado por seu lugar. A poesia de Aloisio Romanelli também é atravessada por seu espaço. Fale um pouco sobre sua relação com esse território, sobre como esses atravessamentos e travessias viram poesia.

A. R. –  De fato, o poeta mineiro incorpora o seu lugar de forma distinta. Acredito que isso ocorra pelas próprias peculiaridades desse estado, carregado de memória e densidade, cercado por montanhas que nos voltam para dentro de nós. A mineiridade, mais do que um pertencimento geográfico, é um estado de espírito em que a sensibilidade se liga à linguagem para dar vazão à experiência poética, ou, como nomeio no meu livro, aos “relances” cotidianos. Viver em Minas Gerais implica ser atravessado por um profundo sentido de interiorização, o que serve muito bem a toda expressão artística. Desse modo, não é por acaso que daqui surgiram figuras como Adélia, Drummond, Guimarães e movimentos musicais como o Clube da Esquina, o qual muito me influencia.

R. N. – De onde é mais fácil retirar poesia: do ventre de uma montanha ou do fundo do mar?

A. R. –  Que ótima pergunta. Penso que os dois são riquíssimas matérias de poesia, como destrincho no livro. As montanhas simbólicas da minha dicção poética trazem elementos densos, enrodilhados e por vezes melancólicos. A leveza e o mistério do mar me transpõem para uma fluida experimentação imagética e contemplativa diante da natureza e das sensações. Dessa forma, a montanha e o mar, na minha poesia, de algum modo se antagonizam e também se complementam, permitindo a construção de um “continuum” poético, sonoro e sensorial.

R. N. – Gostou? Então lá vai mais do mesmo: Rio ou Minas?

A. R. – Sou muito atrelado ao mar e ,uma vez que a minha família reside no litoral do Rio de Janeiro, estou sempre em contato com ele, daí seu lugar na minha poesia. Contudo, me sinto fortemente mineiro e nutro uma profunda  identificação com o meu estado de nascimento , no qual morei quase a totalidade da minha vida. Vejo Minas Gerais como um belíssimo arcabouço de cultura, arte e história, além da comida carregada de afeto, as belezas naturais e , claro, o especial encanto do povo mineiro. Logo, a resposta pra essa pergunta não se torna difícil: uai é Minas.

R. N. – Um daqueles clichês que não podemos escapar porque nossos leitores não deixariam: e o processo criativo? Comente um pouco sobre esses “Relances”, esses momentos em que a poesia bate à porta e se faz necessária.

A. R. – O meu processo criativo, retratado neste livro, se dá a partir dos “relances”, esses ligeiros recortes do tempo, em que a visão lançada sobre a realidade se torna um gesto capaz de transformá-la, um movimento capaz de transfigurar a banalidade dos dias. Assim, a partir desse exercício de visão, cada elemento corriqueiro se torna um vórtice de memórias e sensações. Por meio dessa experiência, as paisagens e seus elementos adquirem uma particular importância, sendo ampliados num contínuo fluxo que escancara os rotineiros encantos, mas também o grotesco da vida.

R. N. – Pensemos em dois poemas: “caveira mexicana”, que você versa sobre “a doida da cidade” e o poema “natalidades”, onde é trabalhado o contraste social de crianças em situação de rua numa noite de natal. Você acredita que o poeta tenha uma função social? Se for o caso, qual seria?

A. R. – Acredito que toda expressão artística cumpre uma função social. Contudo, quando o artista e , nesse caso específico, o poeta adquire consciência disso o seu processo criativo amadurece e pode, assim, alcançar uma dimensão mais ampla. Na minha escrita sempre há espaço para se tocar em mazelas sociais, preconceitos e desigualdades, mas ainda que a poesia que não tangencie esses temas, ela cumpre uma função maior de deslocamento do leitor, de levá-lo a lugares desconhecidos e inquietantes, promovendo algum mínimo abalo em sua subjetividade, evocando memórias, sentimentos e reflexões. Isso por si só, a meu ver, representa um papel social relevante.

R. N. – Ainda pensando sobre essa questão da função social, levantamos o dado biográfico que Aloisio “é psiquiatra, com seis anos de atuação no SUS da cidade, onde trabalhou no fortalecimento da Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial”. Como você avalia a interação entre o fazer psiquiátrico e o fazer poético?

A. R. – Esses dois lugares são para mim complementares. Na minha prática como psiquiatra desempenho um profundo papel de escuta sensível e observação da realidade, logo me deparo com as mais diversas e angustiantes experiências humanas, o sofrimento em todas as suas formas: sociais, econômicas, físicas e psíquicas. Todo esse material é substrato para a minha poesia, ao mesmo tempo que esta me ajuda a lidar com todas essas múltiplas realidades com as quais me confronto na prática clínica. Além disso, o cuidado em saúde mental intrinsecamente necessita da arte como instrumento de ação, não apenas terapêutico, mas também político , representando um modo de resistência e de afirmação no mundo. Cito aqui figuras como Nise da Silveira e Arthur Bispo do Rosário que levaram essa função da arte no contexto do adoecimento mental à sua maior potência.

R. N. – Momento tapinhas nas costas. Sem perguntas. Aqui, agradecemos demais por somar ao projeto e fortalece-lo com suas palavras. Abrimos o espaço para terminar como desejar. Até uma próxima, amigo.

A. R. – Agradeço muito o cuidado na elaboração dessa entrevista e me entusiasmo com a contribuição que espaços como a Revista Navalhista trazem para a poesia independente.


Aloisio Romanelli

Aloisio Romanelli nasceu em Belo Horizonte (MG). Graduou-se em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e hoje é psiquiatra, com seis anos de atuação no SUS da cidade, onde trabalhou no fortalecimento da Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial. Integra a equipe de poetas do Portal Fazia Poesia, um importante portal independente de poesia contemporânea. “Relances de mar e montanha” é seu livro de estreia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *