Parecia um dia comum. Irene acordou às 6hs, preparou o café, chamou as crianças e partiram às 6h45, como sempre, atrasados. Deixou as crianças na escola e dirigiu-se para o trabalho. Na pausa costumeira para o café da manhã, conferiu suas redes sociais que lhe avisaram sobre o aniversário da sua mãe “Meu Deus, como pude esquecer!”, exclamou consigo.
— Alô — falou D. Cilene.
— Alô, Mãe? Parabéns, muitas felicidades e que você continue nos alegrando por muitos e muitos anos mais… Vem Jantar com a gente hoje?
— Oh mia fia, brigada querida, vou sim meu amô… Como tá as crianças?
— Estão bem mãe, mas já tenho que voltar. Depois conversamos melhor, beijos!
— Beijos minha flô.
E o papo encerra-se rapidamente como de costume, pois Irene sempre está muito ocupada. São as crianças, o marido, a casa, o emprego…
D. Cilene morava a duas quadras da casa da filha e raramente a via, e quando via, na maioria das vezes, era ela quem se deslocava até à casa de Irene. Os netos, também dispersos, Amanda e Yuri, 10 e 11 respectivamente, estavam naquela fase da pré-adolescência e não demonstravam muito interesse com os assuntos que poderiam ter com a avó. Amavam-na e muito, mas amavam muito mais seus tablets e smartphones. Amavam à sua maneira.
O genro, Amauri, sempre outrora muito atencioso, ultimamente andava distraído e atolado pelos problemas do trabalho, mantendo-se assim igualmente distante, e D. Cilene pensava que talvez ele não pudesse desperdiçar tempo com a matriarca. “Mas hoje é meu aniversário, um dia especial”.
Dona Cilene chegou à casa da sua filha às 18hs. Irene, que havia saído mais cedo do trabalho para fazer um jantar especial, ao abrir a porta, a surpreende irritada e chorando:
— Eu esqueci o frango no forno e queimou tudo! Eu estraguei o jantar… Eu sou uma péssima pessoa! — Exclama Irene inconsolável.
— Oh meu amô, tá tudo bem, cês não faz ideia de como tô feliz, com jantar ou não!
— Ai mãe, muito obrigada por sempre me entender! Entre, fique um pouco com as crianças que eu vou comprar alguma coisa pra gente e já volto — E saiu desolada.
D. Cilene entrou e sentou-se no sofá. Seus netos estavam lá, mas foi como se não percebessem sua presença, um em cada celular. Ela tentou puxar conversa e só obteve respostas curtas e monossílabas “Sim”, “Não”. Tentou não se chatear com isso, porque “as crianças são assim hoje em dia”.
Ouviu um barulho à porta da entrada, era Amauri. Ele a cumprimentou, bem-educado e cortês como sempre, mas em seguida foi diretamente para seu quarto. “Talvez esteja cansado, vai tomar um banho e voltar, coitado”.
Irene chegou uns 45 minutos depois, com carne assada e fritas, o arroz já havia deixado pronto. Estava um pouco mais calma, mas ainda não se perdoava pelo tremendo erro, seu perfeccionismo a sufocava e ela nem se dava conta disso.
À mesa, enquanto todos se serviam, Amauri ressurgiu e D. Cilene percebeu um clima estranho entre ele e a filha, mas não quis comentar “Afinal, hoje é um dia especial!”.
As crianças, ainda de posse de seus celulares, estavam mais preocupadas com os jogos online do que aproveitar a companhia dos adultos presentes. Os pais, já acostumados com essa situação, já nem lhe chamavam a atenção, ademais, também conferiam seus e-mails e mensagens de whatsapp.
O jantar transcorreu quase silente, salvo alguns momentos em que a senhorinha tentava puxar conversa, recebendo respostas automáticas, porém gentis. Ora era Irene quem tentava suscitar algum assunto, mas logo se calava. Ao término, D. Cilene não quis se demorar mais em estorvar, “Devem estar cansados”, ponderava consigo.
— Preciso ir minha fia. — D. Cilene diz desanimada, mas esforçando-se para esconder tal sentimento. Não queria parecer ingrata.
— Tá cedo mãe… — diz Irene, sem levantar os olhos do celular. Após algum tempo voltou ao presente, ergueu a cabeça rapidamente e continuou, — Desculpa, era uma mensagem da minha gerente… Mas fica mais um pouco… Vamos tomar um café!
— Não meu amô, tô cansada e preciso tomar meus remédios. O jantar tava muito bom. Outro dia conversamos, tá?
— Tá bom mãe, vai com Deus. — disse Irene, já volvendo os olhos para baixo… Mas levantando-se após alguns segundos para acompanhá-la até à porta.
D. Cilene saiu. No caminho de volta para casa pensava com grande pesar que talvez essa fosse a maneira certa de se viver atualmente, senão a única, uma vez que sempre ouvia relatos semelhantes de suas amigas. A cada passo, a cabeça tentava consolar um coração emancipado e que não pretendia agir sob o jugo racional: “Como somos bobas, realmente esse foi um dia especial… Hoje é o meu aniversário!… Essa modernidade deve ser assim mesma, os tempos são outros. Como sou boba!”.

Michelle SN é paulistana, mãe, esposa e amante das artes desde seus primeiros anos. Ama as ciências humanas, mas também tem predileção pelas exatas e trabalha como Analista de QA. Participou de diversas antologias. Em 2024 publicou os e-book “Confabulações eletivas” e “Código Fatal” (Disponíveis Kindle/Amazon). Suas grandes influências são: Machado de Assis, Dostoiévski, Camus, Clarice Lispector e Edgar A. Poe, pela imensa genialidade com que escrevem e perscrutam a natureza humana. Instagram @leia_mii
As palavras podem ser navalhas. É com elas que Michelle disseca com precisão cirúrgica as relações humanas e expõe as vísceras delas ao leitor. Parabéns, Michelle!
É o tipo de conto que me deixa agoniado por me reconhecer com o coração apertado na história. E é isso que uma boa narrativa faz né, absorve-nos para dentro dela, né.