MARIANA BELIZE – 7 poemas
MARIANA BELIZE – 7 poemas

MARIANA BELIZE – 7 poemas

Com a navalha, Mariana Belize. Ficamos com 7 poemas do livro encara a Grande Noite, publicado pela Ofícios Terrestres Edições, em 2024.

 

 

Revista Navalhista

 

 

ousar

 

ousar despedaçar um sonho

desfazer o que foi alimentado

esmigalhar até virar ruína

arruinar essa trapaça

amassar a poeira

lavar o pó

até que nada reste

nem memória

até não saber o que fazer da vida

até não saber o que se é

sem o sonho sem a dor sem o nome dele

sem o peso dos escombros

 

é sem o sonho

essas mãos cruas vazias

com essas mãos ridículas

que eu escrevo

 

o vazio definitivo.

 

 

Revista Navalhista

 

 

Brasas vivas

 

“Aquilo de que eu fugia perseguiu-me”

Bataille

as marcas da vida restaurada

nunca me recuperaram os olhos

às cegas, tateio outras histórias

para esquecer do que vivi

 

no meio da noite,

não restou mais nada

além de um lugar vazio.

 

 

Revista Navalhista

 

 

Cilício

 

no sorriso dele só enxergo uma vontade de chorar

e essa covardia arrogante que sai no seu suor

desalmado e, no entanto, chega a ser bonito

um objeto do meu desejo inaudível

 

nossas crueldades conversam 

como Jean Valjean e o policial charmoso

as árvores caem, eu me desprotejo

sem mesuras, fico risível nas minhas falhas

 

e enquanto você toma um banho demorado

eu cozinho qualquer coisa no fogão

e o casamento segue, entre sorrisos falsos

e uma parca hostilidade na cama compartilhada

 

essa bobagem sem nome nem documentação

meu olhar fixos enxergando apenas 

as janelas abertas na casa do vizinho

e minha eterna saudade de fumar.

 

 

Revista Navalhista

 

 

Hostil

 

beijar a boca apodrecida do meu inimigo

amar todas as suas feridas ao ponto de lambê-las

curando suas dores com o meu desespero

de sofrer ainda mais do que o insuportável

sem nenhum arrepio de medo sofrer e calar

mais uma e outra vez, ainda que o soco venha

beijo a mão que apedreja a boca que amaldiçoa

floresço em cada queimadura, em cada olho roxo

sou uma rosa selvagem regada com sangue

transformada pelas noites sem dormir

e na obrigação de servir amando todos os dias

ainda mais que ontem e no mês passado

eu como depois que a fome passa

eu durmo depois que a dor abranda

eu grito depois que o sol morre

eu choro ainda até mais tarde

e na terceira punhalada

sou capaz de ainda confessar o amor

que me transpassa.

 

 

Revista Navalhista

 

 

Filosofia da peçonha

 

ao afogar a criança

no chuveiro

 

a mãe estava certa

do aprendizado que dava

 

na base da porrada

ensinava

 

que a dor do outro é uma piada

 

 

Revista Navalhista

 

 

Desgranges

 

Desabafar aos desgraçados

o objeto erótico é a prostituta, ela sabe

e um ser assexuado é quem vive na casa

é um móvel, um fogão, um papel triste

a certidão de casamento

Desabafar aos desgraçados

A natureza maldita que distribui soberania

um mundo proibido encantado amargo

demolido na língua das mulheres

como uma gota de rivotril

Desabafar aos desgraçados

Ato gratuito, o limpo, o bom, a alegria

não me pertence nenhum prêmio

que não seja o crânio do estóico

e o homem viril se descontrola 

e já não se desculpa pelas mãos podres

lavadas em sangue de nosotras

Desabafar aos desgraçados

odiar a identidade estável, uma fantasma

da civilização na pequena morte

uma vez por semana com vergonha

reivindicar o poder de auto-destruição

ganhar o outro pela arma na cabeça

Desabafar aos desgraçados

meu esqueleto cúmulo do encanto

alma devoradora de inocências

incendiária de perversidades

infame criatura sádica mulher

fazedora de anjos, sagradas mãos

envenenadoras de homens

sacrílega atleta de Citera

Desgraça em carne viva

narradora da própria vida

sem o charme de Penélope

nem as desculpas de sobrevivente

da bela Sheherazade…

 

Desgranges conhece seu futuro

através do extispício

das virgens.

 

 

Revista Navalhista

 

 

A carne gira

 

Vertigem e abismo

no risco da morte

 

é só um segundo

a língua no umbigo

 

luto da minha fertilidade

útero inútil que só sangra

 

interdito, logo sagrado

fruto de minha ancestral angústia

 

dos meus ossos cremados da infância

torcidos e transformados em cristal

 

o sol corrompe e devora

meu olho indefeso em transe

 

e, do fim ao início,

minha cauda de peixe obscena

 

minha obsessão com a máscara

de porca

 

minha aceitação pelo fim.


Mariana Belize

Mariana Belize é doutoranda em Literatura Brasileira/UFRJ. Integrante do Coletivo Escreviventes, publicou em 2024 seu segundo livro de poemas intitulado “encara a Grande Noite”. Divulga a literatura brasileira contemporânea no podcast Olho de Belize, no Spotify.

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