LAUSAMAR HUMBERTO – 6 poemas
LAUSAMAR HUMBERTO – 6 poemas

LAUSAMAR HUMBERTO – 6 poemas

O navalhista do dia é Lausamar Humberto. Do poeta segue 6 poemas.

Revista O Navalhista

Do que se trata

Dos traumas de tantos, do malogro em ardil,

Da descoberta em espanto, do fantasma febril,

Da vida em revés, das dores em prantos,

Do belo que és, dos vadios, dos santos,

Das fezes nas almas, das flores nos campos,

Do verme que cala, do espírito em quebranto,

Do circo que fecha, da lua em encanto,

Da força que resta, do violador sacrossanto,

Dizem meus versos, com palavras agudas,

Ideias sem tosa, tateando o caminho.

Insurgentes, arrancam-se de mim,

Expondo-me. Inteiro, nu e sozinho.

Revista O Navalhista

Nevoeiro     

              

Que o nevoeiro que virá na manhã

seja uma serra branca a ocultar

os prédios, as casas, as almas.

Que oculte os amores, as mágoas,

os filhos, os primos, os netos, todos.

Que os amigos não sejam reconhecidos,

que os sonhos se percam,

que as esperanças adormeçam,

entorpecidas do branco.

Que o futuro seja alvura desconhecida.

Que o nevoeiro esconda tudo.

Até este desejo de esquecimento.

Revista O Navalhista

o que leva o vento    

                                                 para Adélia Prado

os girassóis que rodam

amarelouquecendo

no dia já indo

é o que traz o vento, menino

é o que traz o vento

o riso ainda fresco

da mocinha que parte

e é quase lamento

é o que traz o vento, menino

é o que traz o vento

os lençóis quarados

esforço de mãe

bailando em desatino

é o que traz o vento, menino

é o que traz o vento

a leve travessura

esgrima com a chuva

no chão lamacento

é o que traz o vento, menino

é o que traz o vento

a alegria pura

de saborear o efêmero

o doce momento

é o que leva o vento, menino

é o que leva o vento

Revista O Navalhista

Sabido           

Noca, peão nas terras do Zeca Costela,

conhece todas as plantas de lá.

O buriti, o araticum, o jatobá,

a mangaba, a lobeira, a mama-cadela.

Conhece de vida, não de livros de botânica.

Conhece de ver brotar, tocar a folha, sentir o cheiro.

Ruela, mecânico na oficina do Ademar,

da cidade, sabe todas as beiradas,

as bibocas, as quebradas, as vielas.

Sabe não pelo mapa das ruas.

Sabe de andar por elas.

Eu, o homem proveta,

dos livros, do escritório e do quarto e sala,

há quem me ache, honestamente, sabido.

Mas minhas vivências, pobre de mim,

são poucas, são raras, são nada.

Quase tudo que sei da vida é de ouvir dizer.

Revista O Navalhista

Genealogia surrealista               

     

Cinco, talvez seis anos.

Visita da vó. Primeira lembrança da vó.

Nunca tinha visto um cachimbo.

Não sabia o que era um cachimbo.

Cachimbo é um odor que invade a casa,

entra pelos poros, preenche a alma.

A vó. O ritual com o fumo. As baforadas.

A vó era o cheiro do cachimbo.

A vó era o cachimbo.

Visita à tia. A tia morava longe.

Não se lembrava da tia.

No almoço, um ovo frito.

O maior ovo frito que já vira.

Diziam que o mar era grande.

A clara do ovo era um grande mar branco.

A gema do ovo era um sol.

Um sol bem amarelo em dia claro.

A memória da tia tornou-se aquele ovo frito.

A tia era o ovo frito.

O tio. O rei dos badulaques,

dos trecos, das quinquilharias.

Um dia, revelou um desejo:

uma lagartixa albina de plástico

com ventosas para grudar na parede.

Amava aquele tio.

Como não amar quem ambiciona

uma lagartixa albina de plástico?

O tio sempre tão frágil, tão etéreo,

tão pálido. Como uma lagartixa.

O tio era a lagartixa albina.

Sem ventosas.

A cerca quase terminada.

O pai pede algo.

A paciência era pouca. Nenhuma.

Demora-se um nada.

Um cabo de martelo na cabeça.

O pai era o galo na testa.

O pai era o cabo do martelo.

O pai era o martelo.

Revista O Navalhista

              

Racha                        

a proporção do campo não é a oficial 
é o tamanho do terreno baldio
as traves, travessões, são caibros, são ripas,
um galho decepado na última tempestade

o término da jornada de trabalho 
dá início ao jogo e a escuridão o findará

depois do Ângelus 
o crepúsculo torna todos morenos
um lusco-fusco igualitário e apaziguador

na ânsia de se agarrar ao prazer da pelada
vai se desafiando a penumbra
guiando-se pelos vultos visíveis
na última nesga de luz.

como se possível atrasar o sol
como se possível suspender a noite
como se possível dar acréscimos à vida


Lausamar Humberto

Lausamar Humberto nasceu em Barretos, SP, em 1975. Vive em Frutal, MG. Formado em Jornalismo e Direito. Foi professor e coordenador do curso de Jornalismo da UEMG – Unidade Frutal. Lançou seu primeiro livro de poemas em 2015, O que resta.  Em 2017, o segundo, O que leva o vento.  Em 2020, lança o terceiro, Chumbo, e a coletânea Por enquanto, que reúne os poemas dos três livros. Em 2022, pela editora Folheando, publicou seu quinto livro: Psicobiografia Poética Não Autorizada; em 2024, A beleza que há, e, em 2025, lançará a antologia O Livro dos 50, também pela editora Folheando.

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