JOSIERE M’HIMBA – O Chamado da Inspiração [conto]
JOSIERE M’HIMBA – O Chamado da Inspiração [conto]

JOSIERE M’HIMBA – O Chamado da Inspiração [conto]

Sonhei com a floresta, algo me chamava, era um sonho recorrente, barulho de água, música, lua. Mas tinha medo.

Eu estava há muitas semanas travado, não conseguia compor. Experiências novas ou que ressoam comigo em um nível primal me inspiram. Ficar horas sentado na praia em dia nublado ouvindo apenas as ondas e a garoa. O mundo se dissolve.

Em visões, a mata se revelava, um convite sussurrado. A água, a floresta, o esplendor do luar… tudo me encantava, mas o medo me impedia.

Ficar grudado ao lado de um quiosque de pão de queijo na estação de metrô Barra Funda no horário de pico observando o movimento incessante da correnteza de pessoas. É fácil perceber a pressa de quem está no automático indo ao trabalho, a melancolia de quem se arrasta a um emprego indesejado, a alegria contagiante de adolescentes se encontrando e indo juntos à escola, despreocupados com o mundo.

A floresta me visitava em sonhos diurnos, uma presença insistente que me intimava. O som da água corrente, a música do mato, o fulgor da lua, mas o medo …

Ainda no âmbito do trabalho, estar às 4h30 da manhã no ponto de ônibus intermunicipais, à beira da rodovia, com metade das pessoas sonolentas, ainda calmas, o despertar de uma cidade. Um vendedor de bolos e café com uma barraquinha improvisada, vendendo um copinho de café a R$0,70 e um pedaço de bolo a R$1,50. Alguns poucos colegas abrindo um sorriso ao se cumprimentarem. Conforme passa o tempo, o ponto de ônibus deixa de ser preguiçoso e se torna mais apressado, às 7h20 está totalmente barulhento, junto ao trânsito, as pessoas estão mais estressadas, e quem entra no ônibus nesse horário é certeza de ir abarrotado, de pé na escada, e para quem não tomou café, azar, o último gole de café foi vendido às 7h00. O vendedor de café está indo para casa trocar de roupa, pois às 8h00 ele tem que estar no ônibus. Trabalha no shopping. O tempo é escasso.

Em sonhos, a mata se mostrava, uma convocação constante. O murmúrio da água, a melodia da selva, o brilho do luar… tudo me atraía, mas o receio me paralisava.

Pegar o ônibus à noite, ver os adolescentes retornando da aula, se empurrando, sem respeitar o espaço alheio, se xingando, rindo alto demais. Tudo que eu odiava quando era adolescente, pois sempre fui alheio, hoje, ver esse tipo de comportamento, me transporta para aquela época. Mas estou esgotado da cidade e longe da praia. Pensar e compor é como comer e estou de jejum.

Sempre fui fascinado por florestas, matas, descampados, morros. A imensidão do verde. Mas, junto com a fascinação, sempre senti medo. Não era um medo de estar sozinho com os animais e as intempéries. Sonhei por muitos dias com a mata, vi muitas rotas, um chamado constante, mas nunca fui. Meu medo era o medo de não estar sozinho.

A cidade me ensinou, da pior maneira possível, que as ruas mais perigosas não são aquelas movimentadas, onde você pode ser vítima de um furto, mas sim as ruas desertas, onde o assalto pode ser violento, onde você corre o risco de ser sequestrado, de se tornar vítima de um assassinato, estupro, ou de ser pego no fogo cruzado de um tiroteio.

O suco gástrico da angústia corroía minha imaginação. Eu precisava escapar, ceder.

Acordei tarde, depois de uma madrugada depressiva e inquieta, desempregado, o dinheiro do seguro estava por um fio, peguei meu violão, companheiro, e o coloquei em sua capa velha e rasgada. Improvisando um fecho com um clips de papel, saí da estação Estudantes, rumo à estação da Luz. De lá, peguei o metrô para Rio Grande da Serra, a porta de entrada para um mundo diferente.

Chegando em Rio Grande da Serra, esperei um bom tempo no ponto de ônibus, mas finalmente embarquei rumo a Paranapiacaba, um vilarejo próximo a mata atlântica, com suas casas antigas e seu charme. Era meio da semana, o lugar estava praticamente deserto, com alguns moradores locais voltando para casa após um dia de trabalho.

Fim de tarde, caminhei um pouco pelas ruas de paralelepípedos, sentindo a tranquilidade do lugar me envolver. O ar era puro, o silêncio era quase absoluto, apenas quebrado por um latido distante ou pelo som do vento.

A noite começou a cair, e as sombras se alongaram, cheguei ao final da Campo Salles, onde ela se encontrava com a Rua Nova. Ali, sem hesitar, entrei na mata fechada. Havia uma trilha mal formada, quase imperceptível, mas eu queria me embrenhar na mata densa. Com cuidado, me apoiei nas árvores e nos cipós, escolhendo cada ponto de apoio com cautela, para não me apoiar em nada vivo.

Quando entrei na mata, eram 19h00. A escuridão gradualmente me envolveu, a neblina úmida e fria. Andei lentamente sem parar até 01h30, cada passo me afastava mais da civilização e me aproximava do desconhecido. A mata se fechava sobre mim, a copa das árvores bloqueando a luz da lua cheia, criando um breu impenetrável. Meus olhos se esforçavam para enxergar, mas a escuridão era densa, impiedosa.

Muitas vezes, enquanto tateava meu caminho pela mata fechada, sentia teias de aranha se enroscando em meu rosto, cipós chicoteando minhas pernas, galhos arranhando minha pele. Mais de uma vez, senti asas voando ao meu redor. Morcegos? Não sei dizer.

Não senti medo, continuei a caminhar. Meu celular velho, com a bateria no modo econômico, 30% de bateria devido aos repetidos usos rápidos da lanterna.

Lamentei não ter levado repelente. Muitas picadas nos braços e nuca.

De repente, uma picada aguda, lancinante, me atingiu no pé. Uma dor insuportável, concentrada em um ponto minúsculo, me fez parar bruscamente. Apoiei meu violão em uma árvore próxima, buscando alívio. Ao apoiar minha mão na árvore, senti algo crocante e gosmento. Um besouro provavelmente. A dor era tão intensa que tirei o sapato e a meia, desesperado para coçar a picada que me atormentava. Um clarão, e a dor se intensificou ainda mais. A picada, antes um ponto focal de dor, agora se espalhava, inflamando meu pé. Liguei a lanterna por apenas cinco segundos, o suficiente para ver minha mão envolta em mosquitos e outros insetos, atraídos pela luz. Desliguei-a imediatamente.

Na escuridão, tateei meu pé, procurando o ferrão que me causava tanta dor. Senti algo pontiagudo, como um caco de vidro finíssimo, preso entre meu pé e tornozelo. Com cuidado, tentei remover o ferrão, a dor me fazendo gemer. Não consegui ver o que era, mas a sensação era de que estava arrancando um fragmento de vidro fininho, mas comprido, como um grafite de uma lapiseira. Não enxergava, mas essa era a sensação. Finalmente, o ferrão cedeu. A dor, embora ainda presente, diminuiu um pouco. Surgiu no lugar ardência.

Segui em frente, cada vez descendo mais, alguns escorregões, apenas uma queda. Ouvi o barulho de água, achei um riacho, e o segui, o barulho cada vez mais alto, me aproximei, eu já estava na beira e não percebi, escorreguei em uma pedra com limo, bati a cabeça, enfiei a mão em uma lama, o violão caiu na lama, mas estava coberto. A queda me deixou um pouco atordoado, mas a dor na minha cabeça não era forte. Levei a mão na nuca, senti um calor, cheirei meus dedos, sangue. Não era muito, provavelmente um cortezinho. A lama estava fria e úmida.

Peguei o celular, o posicionei em direção ao corte, tirei foto com flash. SPLASH! Escutei um barulho de algo pesado caindo na água, olhei desesperado para o meu violão, estava seguro.

Olhei para a foto, um corte pequeno, mas parecia profundo, no canto da foto, no rio, dois olhos brilhando na escuridão. Deve ser a criatura que se assustou com a luz do flash e pulou na água, algum animal.

Não tive medo, fiz pressão na cabeça, estava sangrando ainda.

Arranquei a camiseta e apertei o local, ela encharcou um pouco de sangue, mas depois de um ou dois minutos parou. A dor na minha cabeça havia diminuído, e a picada no pé, embora ainda incomodasse, não era mais tão intensa.

Tentei levantar, a pressão baixou, sentei novamente. O corpo ainda estava um pouco fraco, mas a mente estava alerta..

Depois de uns minutos e umas picadas no corpo, levantei. Estava melhor, escutei o coaxar de um sapo próximo, splash, ele pulou na água, barulho súbito, mas menor que da última vez.

Vesti a camiseta, senti que um pedaço dela estava encharcado de sangue. Dessa vez não liguei a lanterna, mas senti uma presença, talvez saindo da água.

Em poucos metros vi uma pequena queda d’água, uns 2 metros de altura, nesse ponto o riacho se abria, formando, em volta da queda d’água, uma clareira. A luz da lua, antes filtrada pelas copas densas das árvores, agora inundava o espaço aberto. A água da cascata reluzia sob o luar.

Tudo valia a pena. Uma felicidade e calma me invadiram. O piado de um pássaro noturno, uma revoada de morcegos que cruzou o céu iluminado pela lua, o barulho constante da queda d’água…

Peguei o violão, um clarão em minha mente. Aquele ambiente me empurrou a um estado de contradição. A melodia que brotou do meu coração não era triste, nem calma, nem sequer combinava com a melancolia da noite. Era uma melodia frenética, urgente.

Com todas as forças, palhetei um Lá maior em ritmo acelerado, forte, marcado. As cordas do violão vibraram com intensidade. Troquei para o Sol, depois para o Fá, e novamente para o Lá. Acordes simples e abertos, mas carregados.

Meu coração acelerou. Senti como se meu violão fosse uma motosserra cortando os sons da mata noturna, abrindo caminho para a melodia que jorrava. Comecei a fervilhar de ideias, de inspiração. A música me invadia por completo, me transportando para um estado de êxtase.

Comecei a dedilhar nas cordas mais graves do violão, misturando os dedilhados soturnos com batidas inesperadas de powerchords. A melodia se tornava mais complexa.

Eu estava tão feliz, senti o sangue escorrendo novamente na minha nuca.

Eu não tive medo. Amigos, família, dinheiro, amor… nada mais importava. Pela primeira vez, eu chorava de felicidade.

Só queria poder continuar tocando, expor o que eu estava sentindo, liberar toda a emoção que me consumia. Eu estava quase desmaiando, sentia a pressão baixar, o corpo fraquejar. Mas desejei, com todas as forças, tocar mais, botar tudo para fora, ver o sol nascer, esgotar a minha recém adquirida inspiração. Senti um calor, ganhei forças, olhos vermelhos no meio da mata me observavam.

E assim foi. Continuei tocando, ritmos alegres, agressivos, rápidos, compassados. Minhas costas estavam encharcadas de sangue, mas eu continuava tocando, alegre, minha cabeça leve, nas nuvens. A luz da lua começou a enfraquecer, meus dedos empalideciam, mas eu continuava tocando. O frio me fazia tremer, meus dentes batiam, mas eu continuava tocando. Aos poucos, a luz da lua foi desaparecendo, minha boca estava seca, mas meus dedos permaneciam firmes, em êxtase.

Observei o céu mudar lentamente durante minha última música, as cores se transformando, anunciando a chegada do novo dia. O primeiro raio de sol do dia penetrou na mata e acertou meu violão, como um último presente.

Sorri, meu corpo caiu na água. Não senti mais nada.


Josiere M’Himba, nascido em 1993, é historiador por formação e contador de histórias por paixão. Profundamente cativado pelos reinos da ficção científica. Inspirado fortemente por Kafka, Asimov, Leonid Andreiev, Ruben Fonseca, etc. Cinéfilo, ama a inventividade do início do cinema.  Sua jornada literária é de descoberta e disciplina, pois ele se esforça diariamente para trazer à tona as ideias e histórias que há muito residem nos cantos de sua imaginação.

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