Zona rural de uma cidade pequena de interior. Na época, ainda possuía, em torno, de 3.000 habitantes.
A família tinha uma constituição tradicional: pai, mãe, duas filhas e o filho mais velho.
Orgulho e troféu do pai, em um primeiro momento, depois, estorvo. A sensibilidade dele o fazia transitar pelo universo da mãe e das irmãs, sem perder a sua virilidade. As tinha como referência de família em seu coração e as defendia do próprio pai, que não tinha espaço nem no pasto, lugar de animais sencientes.
A vida era simples. O trabalho era na roça. Plantavam uva, cana-de-açúcar e alguma coisa para sobrevivência que trocavam com os vizinhos. Da cana, produziam um pouco de água ardente, mascavo e rapadura. Vendiam bem e ainda sobrava o suficiente para o pai ser alcoólatra.
A rotina da semana se compunha pelo trabalho na lavoura, plantio e colheita. O clima colaborava e ditava a dinâmica e a fertilidade do solo.
Domingo era dia de missa. A mãe e as meninas saiam cedo e andavam cinco quilômetros até a igreja da vila. Uma estrutura de madeira, cheia de simpatia e acolhimento, onde todos do vilarejo se reuniam.
O irmão mais velho tinha alguns conceitos, preferia viver sem pecado e culpa, por isto não precisava ir à missa. Aprendeu isto em algum lugar longe dali. O pai sempre estava ocupado com os seus lampejos de lucides e embriaguez.
Na noite anterior daquele domingo, ele segurou o braço do pai. Estava com uma barra de ferro. Iria bater na sua mãe. Ela não quis dormir com ele pois estava sujo, mijado e fora de si em função de um pico de bebedeira.
O pai extrapolou em ódio. Não teve forças para conter o filho, mas rogou praga. Disse que ele iria engolir e sofrer no corpo e membros o que ele estava fazendo com ele.
No dia seguinte, como de costume, as duas filhas saíram cedo rumo a igreja, como se nada tivesse ocorrido. A dinâmica da vida estava na constância da rotina. Assistiram à missa, encontraram com conhecidos no final e voltaram para casa conversando sobre as novidades dali. A mãe, neste dia, ficou fazendo o almoço. Iriam receber visitas.
Estavam rindo e falando alto no caminho, quando a irmã mais nova, a mais curiosa, viu um pé na valeta na baixada da estrada. Ficou desconfortável e alertou a irmã. Teriam que passar por ali. Chegaram mais perto. Um misto de pânico e dor tomou conta das duas. Estavam sozinhas.
Era o corpo do irmão que tanto amavam. Que tanto as acolhia. Quiseram fazer o mesmo por ele. Cobriram o corpo dele com o que viram primeiro. Na baixada da estrada, havia touceiras de samambaias. Os órgãos internos estavam expostos.
Todo o movimento delas foi em estado de oração e vontade de abraçar aquele irmão, livrá-lo de todo o mau. Não eram deus. A confusão da dor, os muitos questionamentos e a ausência de algum apoio naquele momento conduziam os movimentos delas. Eram crianças. Precisaram resolver o que nenhum adulto merecia.
O carinho das irmãs pelo irmão era muito. Ele as protegia da agressividade do pai. Quiseram proteger o corpo do irmão com aquelas plantas abundantes, como ele fez com elas sem poupar esforços, durante a sua vida toda. Não entenderam o porquê do ocorrido.
O seu Noel passou de charrete. Era conhecido da família de longa data. O irmão mais velho sempre ia até a chácara dele para um dedo de prosa, com a cachaça que produziam. Viu as meninas sozinhas e parou. Ficou estarrecido. Buscou ajuda.
O assassino do irmão o levou para solo de barro, próximo da planície, por onde o rio subia até as casas. As pteridófitas fizeram a passagem, o transportaram para o lugar de onde viemos. Do barro moléculas, voltou nutrientes.
A mãe se jogou ao chão quando recebeu a notícia. Entregou a Deus o seu filho. Perdoou quem havia cometido o crime, sabia que era mais vítima do que o seu filho. Ela sobreviveu com a ausência eterna dele. A falta que nunca fora substituída. Sabia como a vida funcionava. Bastava estar viva para seguir a sua sequência natural. Nenhum filho deveria partir antes dos pais. Ela sabia que para Deus um ano era como a 1.000 anos e 1.000 anos era como um ano. Precisava de um pouco mais. Dirigiu-se para o local.
Quando o viu, o corpo ainda estava cheio de lama e fresco. Ele era lindo aos seus olhos. Não quis mais vê-lo. Entregou-o àquelas plantas. Sua vontade era empurrá-lo n’ água próxima dali e deixá-lo ir. Estaria em melhor companhia.
O corpo precisou ir para o IML de outra cidade e passar por um perito criminal. O crime fora completado.
O porquê das coisas flutuava sobre a água e sumia aos poucos. O tempo o tornava desnecessário. Voava através dos anos como um fantasma ao lado das gerações. Os esporos das samambaias permaneceram no seu corpo. O plantaram para sempre no ciclo sem controle.

Joema Carvalho – Engenheira florestal e escritora. Autora dos livros: Crônicas de Uma Jornada Florestal (2024) e Luas & Hormônios (2010,2020). Coautora do Livro Entre Botânicas Decoloniais: As frutas silvestres de H. D. Throreau e as frutas brasileiras (2022). Organizadora do eBook Tuíra ed. Amazon (2020,2022). Participou de coletâneas nacionais e internacionais e de projetos literários. Membro da Academia Poética Brasileira – APB, Academia Brasileira de Letras – ABL Paraná e do Grupo de Ecocrítica – GECO/UFPR.