GUSTAVO MOURA – Sete horas e oito minutos [conto]
GUSTAVO MOURA – Sete horas e oito minutos [conto]

GUSTAVO MOURA – Sete horas e oito minutos [conto]

Guilhermo está atrasado. De novo.

Não que isso não é novidade. Na verdade, é mais comum do que deveria.

O dia também não tem nada de mais. É uma terça-feira, dia dez de novembro de um ano muito louco que, graças aos céus, se encaminha para o seu fim. O relógio marcava sete horas e oito minutos da manhã quando ao passar pelo Chafariz do Mestre Valentim, em plena Praça Quinze, no centro da cidade que é o cartão-postal do Brasil, Guilhermo escuta algo.

São ondas e sinos.

Ondas batendo contra algo e um sino tocando por cima, como se tentasse vencer o som da natureza em sua forma mais bruta.

É tão visceral que ele quase pode sentir o gosto do sal e o vento na pele morena do rosto. Mas não faz sentido; o Chafariz está a vários metros de distância de onde hoje é a costa; está, basicamente, no meio da praça. Em terra firme. À esquerda de onde ele está parado agora, se você gosta de ser específico.

O jovem olha em volta. Ninguém mais parece notar o ruído, agora um verdadeiro estrondo, de ondas quebrando dentro do grande vão cheio de grama que envolve aquela enorme curiosidade histórica, meio esquecida e deslocada por culpa do progresso.

E então, de repente, tudo cessa.

Ele olha em volta, perdido, mas o mundo parece ter voltado aos eixos, a despeito de sua confusão. Não que ele tenha tempo pra isso, claro; o relógio de pulso acusa seu atraso: são sete horas e nove minutos.

— Droga! — Pragueja enquanto sai correndo, esquecido por um instante do curioso episódio.

Guilhermo passa por ali durante todo o resto da semana, mas sempre dentro do horário. Até que, numa sexta-feira qualquer, após ignorar seu despertador, ele se vê atrasado outra vez. E ali, atravessando a Praça e correndo contra o sol que nascia atrás de si, ele de súbito para de correr e olha para o relógio em seu pulso.

São sete horas e sete minutos.

O evento de terça-feira ganha um novo espaço cativo na parte consciente de sua mente. Ele se vê surpreendido pela necessidade de esperar até às sete horas e oito minutos para ver o que vai acontecer. Nem lembrava que sabia do horário; estava tão certo dele quanto estava do fato de que não tinha imaginado nada. Lentamente, como se aproveitando o suspense, o relógio vai escorregando o ponteiro dos minutos em direção ao fatídico número e pontualmente, às sete e oito da manhã daquela sexta feira, o mar começa a rugir em volta do Chafariz da Praça Quinze.

— Você consegue ouvir, não é?

Guilhermo estava tão entretido com o estranho fenômeno que nem notou a figura que se aproximava dele. Era um dos moradores de rua que dormiam à sombra das árvores que habitavam o Largo do Paço. Lembrava de já tê-lo visto por ali antes, empurrando um carrinho de compras cheio de tudo o que encontrasse pelo caminho.

— Você também consegue? — perguntou o jovem, tão curiosos quanto assustado.

A pele morena do velho homem, castigada pelo sol constante e pela pouca higiene, se encolhia embaixo dos olhos para exibir um sorriso amarelo, desagradável e com alguns dentes faltando. A brisa do mar invisível empurro o cheiro de suor e sujeira que vinha do homem em sua direção, e Guilhermo instintivamente deu um passo para trás.

Sem se intimidar o mendigo se aproximou, com um brilho febril nos olhos escuros.

— Você deve ser muito especial pra ele. Nós nem estamos no horário, sabe.

Guilhermo apenas encarou o homem, sem entender. Ia perguntar algo, quando sua atenção foi novamente atraída para o que estava acontecendo à sua frente.

Dessa vez é tão real que ele sente o cabelo, cacheado e escuro, balançar; definitivamente há sal em seus lábios, e respingos de água em seu rosto. Ele fecha os olhos, e pode ouvir com clareza o sino, acompanhado dessa vez por um emaranhado de vozes masculinas que gritam ordens em um idioma que parece português, mas numa cadência completamente estranha aos ouvidos do rapaz.

Assim que abre os olhos e fita o monumento, ele consegue distinguir, maravilhado, algo que só se pode descrever como “ondas holográficas”: ele as vê bater nas escadas centenárias e nas paredes de pedra, mas ele pode enxergar através delas.

— Ah sim, muito especial — repetiu a estranha figura, num tom satisfeito.

Encantado, o rapaz apoia o pé na mureta de mármore que cerca o enorme vão em volta da construção. Sente que precisa chegar mais perto, olhar com mais atenção, talvez entender o que é dito…

Ele nem mesmo percebe que começou a cair, ou que foi empurrado pelo sem-teto. Os gritos daqueles que passavam se unem aos históricos, enquanto Guilhermo mergulha de cabeça naquela incoerência cósmica e física, para nunca mais ser visto por seus contemporâneos outra vez.

Assustados, todos olham para dentro do grande espaço vazio, procurando o corpo, mas é tarde. São sete horas e nove minutos da manhã de uma sexta feira, e não há sinal de Guilhermo.

No meio da confusão de perguntas e aglomerações, o homem se curva com um sorriso no rosto, como quem agradece, e volta-se para seu carrinho, empurrando-o para longe da confusão.

— Muito especial, muito especial… Ele vai ficar contente… Muito especial mesmo… — repete o sem-teto, se afastando do velho Chafariz.


Gustavo Moura

Gustavo Moura – Escrevo por hobby desde que me entendo por gente. Recentemente, fui convencido de que outros poderiam apreciar o que eu escrevo, e sigo numa luta diária para me convencer disso. Com 29 anos, uma faculdade (quase) completa de Direito, uma família incrível e o melhor jabuti de estimação que alguém poderia ter, me pergunto se farei sucesso um dia.

Acho que não custa tentar.

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